Os
Rostos da História na História Augusta
«Se,
de todas as Histórias que a memória humana registou, a de Roma fez reflectir
mais filósofos, sonhar mais poetas e invectivar mais moralistas, tal deve-se em
parte ao génio de um pequeno número de historiadores romanos (e a um par de
historiadores gregos) que contribuíram poderosamente para prolongar até nós a
recordação e o prestígio de Roma. É porque Plutarco nos mostra os conjurados arrojando-se
no Senado sobre o divino Júlio que .César ficou sendo para nós, e isso mau
grado todos os assassinatos políticos entretanto perpetrados, a imagem por
excelência do ditador executado. É a Tácito que Tibério deve ter-lhe sido
atribuído para sempre o papel do tirano misantropo, e Nero o do artista
falhado. É porque a obra biográfica de Suetónio comporta doze imperadores que
as prateleiras das nossas bibliotecas e as fachadas dos palácios do Renascimento
são quase obrigatoriamente encimadas por doze bustos de Césares. Mas estes
grandes historiadores, muitos dos quais foram primeiro e sobretudo grandes
estilistas, floresceram todos, para empregarmos a expressão usual, no interior
dos cerca de dois séculos que vão da juventude de César à maturidade de
Adriano. O vulgar Domiciano, com que Suetónio encerra a sua revista dos Doze Césares,
é o último imperador romano a beneficiar de um grande retratista. Depois dele,
e durante os trezentos e cinquenta e poucos anos que decorrerão ainda até à
queda de Roma, dispomos apenas de testemunhas medíocres, não só parciais (elas
são-no sempre) mas crédulas, convencionais, confusas, muitas vezes excessivamente
ligeiras ou exageradamente supersticiosas, trabalhando quase às claras com
objectivos de propaganda, reflectindo no seu cérebro e na sua linguagem o fim
de uma cultura, mas ainda assim apaixonantes porque a sua mesma mediocridade
lhes confere uma espécie de veracidade, faz delas os intérpretes qualificados
de um mundo agonizante.
A História Augusta, compilação em que seis
historiógrafos fizeram alinhar vinte e oito retratos de imperadores, sem contar
os de alguns pretendentes ao trono e de alguns Césares (título que significa
aqui herdeiro presuntivo) falecidos prematuramente, oferece destes trezentos
e cinquenta anos uma tranche de vida
de pouco menos de dois séculos. A obra começa com Adriano e os seus sucessores
imediatos, Antonino, Marco Aurélio, isto é, nos mais belos tempos da paz
romana, no apogeu de um mundo que ignorava estar tão perto do seu fim. Termina
com o obscuro Carino, numa hora crepuscular do fim do século III. O próprio
nome e a existência dos cinco primeiros autores (Espartiano, Capitolino, Lamprídio,
Polião, Vopiscus) é hoje matéria de controvérsia e as datas que lhes são
atribuídas variam, consoante os eruditos e os especialistas, desde o meio do
século II ao fim do século IV. Uma boa parte da recolha compila ou copia
disfarçadamente biografias anteriores perdidas; ela mesma foi, por sua vez,
abundantemente interpolada. Como tantas obras antigas, só chegou até nós através
de algumas raras cópias incompletas e defeituosas, que se limitaram a salvá-la
do esquecimento. E no entanto, não é possível aos historiadores modernos da Antiguidade
ignorar a História Augusta; mesmo
aqueles que lhe negam qualquer valor são forçados, quer o queiram quer não, a
servir-se dela. Uma vez que os documentos que nos restam dos séculos II e III
são dispersos e pobres, é neste texto incerto, e que eminentes eruditos puderam
com razão suspeitar tratar-se de uma quase total impostura, que nós procuramos,
à falta de melhor, um quinhão de verdade.
A
autenticidade é uma coisa, a veracidade é outra. Qualquer que seja a data
variando entre o ano mais recuado de 284
e o mais tardio de 395 em que se
possa situar no seu conjunto a redacção da História
Augusta, a questão que se levanta é a do crédito que ela nos deverá
merecer. Este varia, evidentemente, de redactor para redactor e de página para
página. A própria verosimilhança nem sempre é para o leitor um critério decisivo,
uma vez que a noção do plausível, em matéria histórica, depende dos costumes,
dos preconceitos e das ignorâncias de cada tempo. E assim, por exemplo, que os
eruditos do século XVII, impregnados de tradição cristã, aceitavam de bom grado
qualquer retrato de cores negras dos imperadores pagãos, por eles considerados
por junto como infames perseguidores da Igreja nascente; depois, por reacção, a
implícita confiança na natureza humana dos letrados do século XVIII e, mais
tarde, a afectada reserva de um certo tipo de historiadores do século XIX, o
seu curioso respeito pelos homens do poder, mesmo mortos há mil e oitocentos
anos, ou simplesmente a falta de experiência da vida nestes homens de gabinete,
levaram-nos muitas vezes a declarar impossíveis ou improváveis factos que um
leitor mais habituado a olhar de frente a realidade não hesita em considerar
plausíveis ou verdadeiros. As atrocidades a que assistimos em pleno século XX ensinaram-nos
a ler com menos cepticismo a narrativa de crimes de imperadores da
Decadência; e, no que diz respeito à história dos costumes, já La
Rochefoucauld observava que os deboches de Heliogábalo nos surpreenderiam menos,
se a historia secreta dos nossos contemporâneos fosse melhor conhecida». In Marguerite
Yourcenar, A Benefício de Inventário, 1962, 1978, Difel, tradução de Rafael
Filipe, Lisboa, 1988, Depósito legal nº 24582.
Cortesia
de Difel/JDACT