A
primeira vez
«(…)
Ler o relato da primeira vez, de um
juiz pode ser pungente. Numa crónica, publicada num jornal associativo, uma
jovem juíza, de origem minhota, relatava como decorrera a sua colocação no
tribunal de Moura, em pleno Alentejo. Tanto
me aparece o guarda-florestal que vai prestar juramento, que eu não presto
enquanto não ler o artigo do Decreto-Lei de mil novecentos e troca o passo, a
fim de perceber, mais ou menos, qual será o meu papel, como os mais
inimagináveis incidentes jurídicos, suscitados por advogados com nomes
pomposos, ou pertencentes a afamadas sociedades, com os nomes dos sócios a
ocupar metade das páginas. Com vinte e poucos anos e sem nenhuma
experiência profissional, os jovens magistrados vêem-se, de repente, com a vida
dos outros diante de si. A comarca
caracteriza-se sobretudo por execuções, regulações do poder paternal, divórcios
e inventários. Muitas vezes sem ter passado por um estágio decente, de um
dia para o outro, passam a comandar um tribunal. A comandar, salvo seja. Na prática,
quem manda nos tribunais são os funcionários judiciais. Eles é que lá estão há
anos, são mais velhos e alguns até sabem de leis, enquanto os juízes, esses,
vão e vêm, saltitando de comarca em comarca. Foi isso mesmo que a jovem
magistrada descobriu à sua própria custa.
Como vamos lidar com os funcionários? Devemos ser austeros para nos impormos?
Se tivermos conversas informais e
dissermos piadas, estamos a dar o flanco? Uma coisa é certa: os
funcionários têm um grande controlo sobre o nosso trabalho, desde logo face ao
número de processos que nos concluem diariamente. Tradução: os funcionários, se
quiserem, conseguem lixar um juiz. Há
outro aspecto, e importante, que a juíza não mencionou: legalmente, os juízes
não têm poder disciplinar sobre os seus
funcionários, sejam eles desleixados ou incompetentes. A relação entre uns e
outros chega a tornar-se caricata, como sucedeu, há tempos, com o problema dos
passes sociais. Os funcionários judiciais, alegando que não eram criados, recusaram-se a ir à bilheteira
da Carris carregar os passes sociais de que os magistrados beneficiam por terem
direito a utilizar gratuitamente os transportes públicos. Só lá foram com uma
ordem de serviço.
O
que esta juíza também desconhecia é que os tribunais, além das paredes, pouco
mais têm. Há uma única linha telefónica.
O que quer dizer que quando alguém está ao telefone, mais ninguém no tribunal
pode fazer chamadas. O ar condicionado é outro luxo a que este tribunal não tem
direito, o que não se compreende face às amplitudes térmicas a que estamos
sujeitos, sendo certo que o quadro da electricidade não aguenta com certo
número de aquecedores. Esta juíza conseguiu, apesar de tudo, olhar o que a
rodeava. Captou-me a atenção o facto de
as pessoas se juntarem sem que haja casamento, em maior número que no Norte.
Por outro lado, noto que há menos ambição e mais indolência que no Norte. Sendo
certo que há menos oportunidades de emprego, julgo haver mais pessoas que não
trabalham porque não querem e podendo viver de um subsídio, ainda que mal,
preferem-no.
O
juiz MacDonalds
Quem
ler a crónica que uma juíza publicou num jornal sindical apercebe-se de que,
afinal de contas, o ritmo de trabalho dos juízes é esmagador. Espera-se rapidez,
reflexão, total actualização, interiorização automática das alterações legislativas
diárias, milagres na marcação dos julgamentos, o domínio dos vários
processados, na sua maioria apelidados de simplificados,
mas que de simples só têm o nome. À sua espera têm o expediente, as diligências
de menores, as audiências preliminares, os julgamentos, as conferências de
interessados, as falências, as expropriações, os despachos de fundo e tudo,
tudo, tudo... O texto prossegue depois, em tom sarcástico. O quê?! Não está a
conseguir? Já deixou de passear, de ler (outros livros que não
jurídicos), de ir ao cinema, ao teatro, de fazer desporto já retirou grande
parte dos fins de semana aos seus filhos, já foi ao psiquiatra e já anda a
tomar antidepressivos e mesmo assim
não está a conseguir? Talvez..., não esteja a dar o melhor de si
próprio. Lembra-se do tempo em que se valorizava um juiz por reflectir, ponderar, estudar? Esqueça. Está
totalmente fora de moda. A ideia é que deve ser uma espécie de McDonalds da
Justiça: rápido e em massa. Resta acrescentar que se em Lisboa, ou no
Porto, os juízes têm 4000 processos às costas, no resto do país, os tribunais
andam às moscas, como sucede em Vinhais ou nas Ilhas, onde têm 300. As
estatísticas, aliás, revelam que o número de magistrados em Portugal é mais do
que suficiente. No Supremo Tribunal de Justiça até sobram: são 60, mais do que
no Supremo Tribunal espanhol, que tem apenas 40 conselheiros, por onde passam o
quádruplo dos processos». In Sofia Pinto Coelho, As Extraordinárias
Aventuras da Justiça Portuguesa, Histórias insólidas de juízes, advogados,
procuradores e de todos nós, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2009, ISBN
978-989-626-186-3.
Cortesia
de ELivros/JDACT