sábado, 16 de maio de 2015

Café Central. Álvaro Guerra. «Da Lurdinhas Paiva dos saudosos chás das quintas-feiras com o falecido farmacêutico passara-se à virtuosa dona Lurdes Paiva Soares e, desta, à respeitada viúva Soares. Aproximava-se então a terceira metamorfose…»

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«Mal se extinguiram os ecos das manifestações do fim da guerra, Vila Velha reentrou no quotidiano, com fumos de vitória e o mesmo pasmo boleando as esquinas e as almas. Até os fascistas, os bravos fascistas vila-velhenses, se apoderavam da vitória dos Aliados, como se tivessem andado nos maquis de França, à manche de Spitfires ou aos comandos de algum tank do general Paton. Em tempo de paz escolhia-se o triunfo na guerra dos outros. E vigiavam-se promessas de progresso. Um dos primeiros vila-velhenses a concretizar aspirações de vulto foi o Belmiro Belezas, filho do taberneiro Victor Belezas, um rapaz com ambições e estudos liceais desperdiçados ao balcão do pai, entre copos de vinho, carapaus de escabeche e pastéis de bacalhau. Conseguiu do abastado José Costa, o Tainha Rico, sociedade e crédito para realizar o seu sonho: um café moderno, como os de Lisboa. O anúncio de concorrência iminente apanhou o galego proprietário do Café Central, ex-República, com setenta anos e frequentes crises de reumático. À novidade encolheu os ombros e, por desfastio, sugeriu: e se pintássemos as paredes?... De verde-adiantou o filho, que era de poucas falas. Manuel Maria voltou a encolher os ombros. Tanto se lhe dava a cor das paredes, desde que continuasse a ver a cor do dinheiro da freguesia. Arrastando os pés, dirigiu-se ao balcão, largou a bandeja em cima do mármore, despiu o casaco branco e, encaminhando-se para a porta interior que ligava o estabelecimento à residência, disse para o herdeiro: amanhã, passa pelo Praga de Mãe. Pede-lhe orçamento. O relógio da Câmara deu meia-noite e os últimos três clientes arrumaram o dominó, mastigando bocejos. António Maria deu as boas-noites ao pai e ficou a olhar as paredes acastanhadas de fumo, manchadas de humidade, procurando na memória a cor primitiva. Em vão. Mais tarde ou mais cedo, mesas e cadeiras novas, pensou. Pela primeira vez, sentiu-se dono e senhor do Café Central. Depois de correr os taipais, olhou o cartaz encaixilhado onde Santa Camarão esboçava um upercut decisivo que era já uma recordação. Subiu a guarda, arqueou o tronco, ligeiro de pés, aplicou uma finta a duas mesas e acertou um directo no futuro. Sabia-se predestinado a ganhar o seu combate com o tempo, num ringue pintado de fresco, de verde. Nesse Verão de 45, outras transformações se forjavam.
Da Lurdinhas Paiva dos saudosos chás das quintas-feiras com o falecido farmacêutico passara-se à virtuosa dona Lurdes Paiva Soares e, desta, à respeitada viúva Soares. Aproximava-se então a terceira metamorfose, prematuramente crismada pelo advogado Vicente Mourão como fase da viúva alegre. O primeiro sinal foi a reabertura da Farmácia Asclepius, representando o abandono do persistente pê-agá um sintomático corte com o passado. Dona Lurdes adaptando-se a novas circunstâncias, aliás favoráveis, desistira do projecto da loja de modas. Pelo menos às drogas mantém-se fiel, insinuava maliciosamente o notário. Quisera o acaso que um rapaz de vila Nova, filho de um pequeno industrial de curtumes, de sua graça Emílio Coelho, concluísse o curso de Farmácia, após uma odisseia de catorze anos de larga boémia e moderada frequência da Universidade de Lisboa. O surpreendente epílogo da carreira universitária de Coelho veio muito a propósito resolver os embaraços de dona Lurdes que assim podia manter-se no ramo do querido defunto. Sem delongas, propôs ao licenciado direcção técnica, bom ordenado e percentagem. Tanto bastou para que a Vila murmurasse outros entendimentos, perversamente instigados pela feroz concorrência da Farmácia Ideal com a Gertrudes Purificação à cabeça.
À actualização da ortografia na fachada do estabelecimento juntava-se a fama de boémio do Emílio Coelho com a sua silhueta à Dominguin e o seu bigode à Clark Gable. As bocas da Vila destinavam-no já a protagonista do período viúva alegre de dona Lurdes, se bem que, nesse Verão, mal se detectassem os inocentes indícios de um ou outro olhar pestanudo e lânguido ou uma presença mais demorada da viúva entre unguentos e xaropes. Para falatório, porém, não bastavam a Vila Velha os negócios do mundo e os reais problemas do Concelho. Que casos graves mereciam mais atenção ficou logo demonstrado, em princípios de Agosto, quando caiu sobre Hiroshima a primeira bomba atómica. A entrada numa nova era em que o homem provava ser capaz de destruição universal apanhou parte da Vila em merecido gozo das delícias estivais. Apesar disso e da considerável distância da pavorosa explosão, chegaram a Vila Velha ondas de choque». In Álvaro Guerra, Café Central, Edições O Jornal, Lisboa, 1984, Depósito legal nº 5030.

Cortesia OJornal/JDACT