O Tempo de Meu Pai
«(…) A minha mãe nunca gostou da Germânia. Ela não lhe encontrava
luz suficiente, sol e alegria como gostava. Jamais esquecia que nascera em
Atenas, durante a longa viagem de seu pai, Agripa, encarregado de aí
restabelecer a majestade de Roma. Também ela era filha de rei, um rei sem
coroa, mas dotado de um poder absoluto sobre aquela metade do mundo, como o
fora António vinte anos antes. E eis que ela desposara, precisamente um neto
desse António. Bem podiam ensinar a calar este nome, ou a pronunciá-lo apenas
em voz baixa, que ninguém no palatino conseguia deixar de pensar nele. Mesmo
que ela própria já não o mencionasse, o mesmo não se passava com o meu irmão Caio,
que só jurava por ele. Caio tinha só treze anos, quando a minha mãe e eu
tivemos esta conversa memorável, que me pôs a par do drama em que eu fiz a
minha aparição neste mundo; mas ele, ele não tinha qualquer dificuldade em
falar fosse do que fosse. E muito em particular de temas proibidos. Foi ele
quem me deu a conhecer a história do nosso bisavô António. Ele adorava
chamar-me à parte e fazer-me conversas que tanto me apavoravam como fascinavam.
Acreditas que os nossos pais e os
nossos avós foram sempre sábios, tão bem comportados como querem que nós
sejamos? Hipócritas! Olha, a velha Lívía, que fala tão bem do seu
marido, o deus Augusto, com pesar na voz; sabias que ela foi raptada por ele,
que ela só se casou forçada e que o casamento deles não foi dos melhores? Para
o manter, ela arranjava-lhe servas e outras moças. E quanto a ela..., mas chiu,
silêncio! São segredos de Estado." Depois, sussurrando com dificuldade,
disse-me ao ouvido: a propósito de
segredos de Estado, sabes quem é o verdadeiro pai da nossa mãe? Não? Pois bem,
o próprio Augusto, com a sua filha Júlia. E acrescentava, como se essa
mentira lhe inspirasse prazer: nós somos o produto de um incesto. Temos
o mal connosco. Nada o pode apagar. Somos impuros! Impuros!
E subitamente: só os idiotas se preocupam com isso. Pensas que
isso de dormir com a filha incomoda os deuses? E ele recitou-me uma lista
interminável. Apenas retive o nome de Tiestes, porque era o de uma personagem
da tragédia e eu gostava de tragédias. Por fim, ele acrescentou: e não esqueças, pequena Agripina, que
Júpiter tomou como esposa a sua irmã Juno... Depois do que ele começava a
dançar, cantando: quem quer tornar-se
deus para dormir com a própria irmã? Eu não levava aquilo muito a sério e
estava muito longe de compreender tudo mas, pouco a pouco, insinuava-se em mim a
ideia de que a nossa família não era do mesmo tipo que as dos outros homens. Não
era Augusto um deus? E, para os deuses, são o Bem e o Mal a mesma coisa
que são para nós? Para nós? De todo; para os outros! Eu sentia o sangue de
Augusto correr em mim, esse sangue de um Imortal que me fora transmitido pela
sua filha Júlia, minha avó, como a minha outra avó, Antónia, me transmitira o
de António, que os egípcios honraram como um deus. Caio não ficou por ali nas
suas revelações. Também me falou de Júlia da forma como ela viveu, dos amantes que
teve. Ele era inesgotável também sobre Cleópatra, sobre a maneira como ela se
suicidou. Conhecia tudo aquilo muito melhor do que qualquer um, e muito melhor
do que eu, sobretudo, pois as alusões que a minha mãe alguma vez possa ter feito
a todo esse passado nunca foram muito claras.
Quando o meu pai, depois do seu triunfo, foi enviado por Tibério
para as províncias situadas além-mar, aminha mãe regozijou-se por reencontrar o
país da sua infância. E tanto mais que Germânico teria aí plenos poderes, como
Agripa outrora. Pelo menos, assim o pensava ela. O imperador declarara aos Patrícios
que apenas a sabedoria de Germânico poderia reconduzir a calma a essa região.
Naturalmente, ninguém o contrariou e Germânico partiu para o Oriente, e nós com
ele. Recordo-me dessa interminável viagem. Uma vez mais, a minha mãe estava grávida.
Eu começava a ser suficientemente crescida para compreender que ela suportava
mal os balanços do nosso carro, nas más estradas, e pouco melhor os movimentos
do navio, quando, após longos trajectos por terra, embarcávamos num barco da frota
militar. A viagem começara no Inverno e eu soube mais tarde que esse era o pior
momento do ano para uma travessia. A nossa mãe sofria muito. Eu passava tanto
tempo quanto podia junto dela. Ela dizia-me que eu a reconfortava. Eu percebia também
que ela era sensível às honras com que a rodeavam, a bordo e ao longo das
estradas, mas isso não a impedia de sofrer dores terríveis, em certos momentos.
O meu pai, bastante ocupado, mesmo durante as navegações, recebendo a todo o momento
mensagens que lhe chegavam de barcos rápidos ou de correios especiais, tendo de
ditar sem demora as respostas, preparando, dizia-nos ele, as medidas que
deveria tomar quando chegasse aqui ou ali, não podia fazer melhor do que vir de
tempos a tempos saber como suportava ela todas aquelas provas; e então, depois
de algumas palavras de encorajamento, desaparecia, completamente dedicado aos
seus deveres». In Pierre Grimal, Memórias de Agripina, Lyon Edições, Romances
Históricos, 2000, ISBN 972-8461-51-8.
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