O silêncio da neve A viagem para Kars
«(…) Ele desceu do autocarro. Quando o seu pé afundou no macio
tapete de neve, uma lufada de ar frio cortante entrou-lhe pelas pernas da
calça. Ele reservara um quarto no Hotel Palácio de Neve. Quando procurou o
motorista para lhe perguntar onde ficava o hotel, viu duas ou três fisionomias
que lhe pareceram familiares entre os passageiros que esperavam a bagagem, mas,
com a neve caindo tão densa e rapidamente, ele não conseguiu descobrir quem
eram. Ka viu-os novamente no Café Campos Verdejantes, para onde foi depois de
deixar a bagagem no hotel: um homem cansado e preocupado, mas ainda bonito e
atraente, com uma mulher gorda porém vivaz que parecia ser sua companheira de
toda a vida. Ka vira-os representar em Istambul na década de 70, quando eles
eram os expoentes do teatro revolucionário. O nome do homem era Sunay Zaim.
Enquanto contemplava o casal, deixou a cabeça divagar e finalmente chegou à
conclusão de que a mulher lhe lembrava uma colega do primário. Havia outros
homens na mesa deles, todos com aquela palidez mortal que revela uma vida
passada no palco; o que uma pequena companhia de teatro estaria fazendo naquela
cidade esquecida, ele se perguntou, numa noite de Fevereiro? Antes de sair do
restaurante, que vinte anos antes estivera cheio de funcionários públicos de
alto escalão, em casaco e gravata, Ka pensou ter visto um dos heróis da
esquerda militante sentado noutra mesa. Mas era como se um manto de neve
tivesse recoberto as suas lembranças daquele homem, do mesmo modo como fizera
com o restaurante e com a própria cidade combalida e ofegante. As ruas estavam
vazias por causa da neve, ou aquelas calçadas geladas viviam sempre desertas?
Enquanto andava, ia observando atentamente os anúncios que se viam nas paredes,
cartazes da campanha eleitoral, anúncios de escolas e restaurantes e os novos
cartazes com que as autoridades municipais esperavam conter a onda de
suicídios: os
seres humanos são obras-primas de Deus, e o suicídio é uma blasfémia. Pelas vidraças cobertas de gelo de uma casa de chá, meio
vazia, Ka avistou um grupo de homens amontoados ao redor de um aparelho de televisão.
Ele alegrou-se um pouco ao ver ainda de pé aquelas velhas casas de pedra em
estilo russo, que tinham feito de Kars um lugar tão especial na sua lembrança. O
Hotel Palácio de Neve era um desses elegantes edifícios em estilo báltico.
Tinha dois andares, com janelas compridas e estreitas, que davam para um pátio,
e uma arcada voltada para a rua. A arcada tinha cento e dez anos e era alta o
bastante para dar passagem, com facilidade, a charretes puxadas por cavalos; Ka
sentiu um arrepio de excitação ao passar por baixo dela, mas estava cansado
demais para se perguntar por quê. Digamos apenas que tinha algo a ver com uma
das razões que o levaram a Kars. Três dias antes, Ka visitara a redação do Republicano
em Istambul, para ver um amigo de juventude. E aquele amigo, Taner, falara-lhe
das eleições municipais que se aproximavam e também do extraordinário número de
jovens mulheres que, como na cidade de Batman, sucumbira à onda de suicídios.
Taner chegou a dizer que se Ka quisesse escrever sobre esse assunto e ver qual
era realmente a situação da Turquia depois de sua ausência de doze anos, devia
pensar em ir a Kars; como não havia ninguém disponível para essa tarefa, ele
podia conseguir uma credencial de jornalista; e além do mais, disse ele, Ka
poderia estar interessado em saber que a sua ex-colega de escola İpek residia
agora em Kars. Embora separada do marido, Muhtar, ela continuava na cidade e
estava vivendo com o pai e a irmã no Hotel Palácio de Neve. Enquanto ouvia as
palavras de Taner, que escrevia comentários políticos para o Republicano, Ka
lembrava-se de quanto İpek era bonita. Cavit, o recepcionista, estava
assistindo à televisão. Ele entregou a chave a Ka, que subiu ao segundo andar,
encaminhando-se para o quarto 203; tendo fechado a porta atrás de si, sentiu-se
mais calmo. Depois de cuidadosa análise, concluiu que, apesar dos temores que o
assaltaram durante a viagem, nem o seu coração nem a sua cabeça estavam
perturbados ante a possibilidade de İpek se encontrar no hotel. Depois de uma
vida em que toda a experiência amorosa trazia a marca da vergonha e do
sofrimento, a perspectiva de apaixonar-se deixava Ka tomado de um medo intenso,
quase instintivo. No meio da noite, antes de ir dormir, Ka atravessou o quarto
de pijama, abriu as cortinas e observou os flocos grossos e pesados de neve que
caíam sem cessar». In Orhan Pamuk, Kar, 2002, Neve, Nobel da
Literatura, tradução de Luciano Machado, Companhia das Letras, 2006, ISBN 853-590-922-2.
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