O Deserto-Floresta no Ocidente Medieval
«(…) Os modelos culturais do Ocidente medieval derivam primeiro que tudo
da Bíblia, isto é, do Oriente. O deserto é lá uma realidade ao mesmo tempo
geográfico-histórica e simbólica. Uma realidade ambivalente, portanto.
Assassinado Abel, da descendência dos dois outros filhos de Adão e Eva
nasceram, da parte de Set, a religião, pois que Enós, filho de Set, foi o
primeiro que começou a invocar o nome de Javé, e da parte de Caim, a cultura,
sobretudo a cultura material nas suas quatro formas principais: a vida citadina
com o próprio Caim, que construiu a primeira cidade; a civilização pastoril do
deserto com Jabal, descendente de Henoc, filho de Caim, que foi o iniciador
daqueles que moram em tendas junto dos rebanhos; a arte sob a forma de música
com Jubal, irmão de Jabal, que foi progenitor de todos os tocadores de cítara e
de flauta; o artesanato, por fim, com Tubal-Caim, meio-irmão de Jubal e Jabal,
que foi forjador de toda a espécie de cobre e de ferro.
Perante a cidade, criação de Caim, o deserto conserva ao longo de muito
tempo a sua boa reputação no antigo Israel. Apesar das dificuldades da
travessia do deserto por ocasião do Êxodo, a recordação do mundo do deserto
deveria permanecer na memória dos Hebreus. É Javé quem o diz, quando é instituída
a festa das tendas. De igual modo, no episódio de Agar, Javé mantivera um certo
equilíbrio entre a vida no meio dos homens, onde habitavam Sara e Isaac, e o
exílio no deserto, para onde Abraão se resignou a enviar Agar e Ismael, depois
de Javé lhe ter dito: Não te preocupes com a criança e com a tua escrava. Faz
tudo quanto Sara te pedir, pois de Isaac há-de nascer a posteridade que usará o
teu nome. Contudo, farei sair também uma nação do filho da escrava, porque
também ele é teu filho. Depois de a vida sedentária ter feito dos judeus um
povo de citadinos e as imagens de Jerusalém e de Sião terem substituído por uma
simbólica urbana as antigas prerrogativas do deserto, a ambivalência dos
valores conexos com o deserto persistiu ainda. Nos Salmos, se se louva Javé
pela construção de Jerusalém Aedificans
Ierusalem Dominus, Salmos, a recordação agridoce do deserto está sempre
presente, guiou o seu povo no deserto, e porque é eterna a sua misericórdia,
Salmos. Mas o deserto valorizado no Antigo Testamento não é um lugar de
solidão, é um lugar de provas, é sobretudo um lugar onde se vagueia, um lugar
de não-fixação.
Não me deterei mais na imagem complexa e evolutiva do deserto no Antigo
Testamento. Contrapôs-se, por exemplo, o deserto do Génesis, deserto do caos
originário, depois anti-jardim imposto como castigo a Adão e por fim lugar de
provas individuais para os patriarcas, ao deserto do Êxodo, o Sinai de Moisés e
do povo hebreu, deserto colectivo onde se verifica a revelação decisiva de Javé.
Foram também sublinhadas as estreitas ligações existentes entre o deserto, o
oceano, a morte, o sheol, morada quase-infernal
dos defuntos. Estas associações características do antigo judaísmo não se
encontram no cristianismo, embora possamos perguntar-nos se por exemplo, os eremitas
celtas, que, durante a Idade Média, procuravam o deserto no oceano, não teriam
sido encorajados na sua procura pela leitura do Antigo Testamento. Com o
Novo Testamento a imagem do deserto bíblico muda. Além de um lugar, o deserto
no Antigo Testamento era uma época, um período da história santa, durante o
qual Deus educou o seu povo.
Para Jesus, o Galileu, o deserto da Judeia em que vivia João Baptista,
região quase vazia, constituída não de areia mas de montanhas, é um lugar
perigoso, lugar de tentações mais ainda do que de provas. É a morada dos espíritos
malignos, o lugar em que Satanás procura subitamente tentar Jesus: então Jesus foi
conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo Diabo. Mas é também o
lugar onde Jesus se refugia e procura a solidão. No Apocalipse, o deserto é o
refúgio da Mulher, quer dizer, de Sião, do povo santo da idade messiânica, da
Igreja dos crentes. Com o cristianismo tem início, no Oriente, a epopeia do deserto.
Ela bem depressa transmitirá ao cristianismo latino ocidental alguns textos
fundamentais que estão na base da hagiografia e da espiritualidade do deserto. O
texto mais antigo é a Vida de Santo Antão, do grego Atanásio, bispo de
Alexandria por volta de 360, cujo
sucesso se estende quase de imediato ao Ocidente, mediante traduções latinas. A
primazia de Santo Antão no eremitismo é pouco depois contestada por S.
Jerónimo, que, por volta de 347(?), no deserto de Cálcide, a leste de
Antioquia, escreve a Vida de Paulo de Tebas, primeiro eremita. Mas
que importância tem a historicidade dos dois santos, a precedência de um ou do
outro? O Ocidente medieval viu neles os grandes modelos do ideal desértico e
Jerónimo, num golpe de génio, imaginou que Antão, com a idade de noventa anos,
foi visitar Paulo, ultracentenário, no seu ermo. Numa atmosfera mais
delirante que o romantismo mais desenfreado de um Victor Hugo, o velho presta
homenagem ao mais velho que ele, compete em cumprimentos e volta para
sepultá-lo num sudário que vai buscar ao seu próprio eremitério». In
Jacques le Goff, Il meraviglioso e il quotidiano nell’occidente medievale,
Gius, Laterza, 1983, Roma, O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval,
Edições 70, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-44-1563-5.
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