Dados
«Os
primeiros dados desta nossa história consistem, muito modestamente, na
descrição de uma vida familiar. Trata-se de uma família da baixa burguesia: baixa
burguesia no sentido ideológico, não no sentido económico. Trata-se, de facto,
de pessoas muito ricas, que vivem em Milão. Cremos que não será difícil imaginar
como vivem estas pessoas; como se comportam nas suas relações com o seu
ambiente (que é justamente o da burguesia industrial abastada), como agem no
seu círculo familiar, e assim por diante. Acreditamos também que não será
difícil (permitindo-nos assim evitar determinados pormenores pouco inovadores)
imaginar, uma a uma, estas pessoas: de facto não se trata de modo algum, de
pessoas excepcionais, mas de pessoas mais ou menos medianas. Tocam os sinos do
meio-dia. São os sinos da vizinha Lainate, ou de Arese, ainda mais perto. Ao
toque dos sinos, misturam-se os gritos, discretos e quase doces, das sirenes.
Uma fábrica ocupa totalmente o horizonte (muito incerto, devido à leve neblina
que nem a luz do meio-dia consegue dispersar) com as suas muralhas de um verde
tenro como o azul claro do céu. É uma época do ano indefinida (poderia ser
Primavera, ou o início de Outono: ou as duas juntas, porque esta nossa história
não tem uma sucessão cronológica), e os choupos que rodeiam em longas filas a imensa
clareira onde emergiu a fábrica há apenas alguns meses ou anos, estão despidos,
ou somente a rebentar (ou então têm as folhas secas).
Anunciando
o meio-dia, os operários começam a sair da fábrica, e as filas dos carros
estacionados, que são às centenas, começam a ganhar vida... Neste ambiente, com
este pano de fundo, apresenta-se a primeira personagem da nossa narração. Da
entrada principal da fábrica, entre a saudação quase militar dos guardas, sai,
na realidade, lentamente, um Mercedes: no interior, com um rosto doce e
preocupado, um pouco apagado, de homem que durante toda a vida não se preocupou
senão com os negócios e, talvez de vez em quando, com o desporto, está o dono,
ou, pelo menos, o principal acionista, daquela fábrica. A sua idade situar-se-á
entre os quarenta e os cinquenta anos: mas é muito jovial (a face está
bronzeada e os cabelos são apenas ligeiramente grisalhos, o corpo é ainda ágil
e musculoso, como o de quem praticou desporto na juventude, e continua a
fazê-lo. O seu olhar está perdido no vazio, entre preocupado, aborrecido ou
simplesmente inexpressivo: por isso, indecifrável. A entrada e saída assim
solenemente da fábrica, da qual é o dono, não é para ele senão uma rotina. Em
suma, tem a aparência de um homem profundamente imerso na sua vida: o facto de
ser um homem importante do qual dependem os destinos de tantos outros homens,
torna-o, como acontece, inatingível, alheio, misterioso. Mas trata-se de um
mistério, por assim dizer, pobre em espessura e tonalidades. O seu carro deixa
para trás a fábrica, longa como o horizonte, e quase suspensa no céu, e toma a
estrada, acabada de construir entre os velhos choupais, que vai em direcção a
Milão». In Pier Paolo Pasolini, Teorema, 1968, 1991, 1994, Quasi Edições,
tradução de Ana Tanque, biblioteca Metamorfose, 2005, ISBN 989-552-105-7.
Cortesia
de QuasiEdições/JDACT