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Em dialéctica e em resposta pronta ninguém ganha a vossa alteza, Pois olhe que
não falta por aí quem diga que as fadas que presidiram ao meu nascimento não me
fadaram para o exercício das letras, Nem tudo são letras no mundo, meu senhor,
ir visitar o elefante salomão neste dia é, como talvez se venha a dizer no
futuro, um acto poético, Que é um acto poético, perguntou o rei, Não se sabe,
meu senhor, só damos por ele quando aconteceu, Mas eu, por enquanto, só tinha
anunciado a intenção de visitar o salomão, Sendo palavra de rei, suponho que
terá sido o bastante, Creio ter ouvido dizer que, em retórica, chamam a isso
ironia, Peço perdão a vossa alteza, Está perdoado, senhor secretário, se todos
os seus pecados forem dessa gravidade, tem o céu garantido, Não sei, meu
senhor, se este será o melhor tempo de ir para o céu, Que quer isso dizer, Vem
aí a inquisição (maldita), meu senhor,
acabaram-se os salvo-condutos de confissão e absolvição, A inquisição (maldita) manterá a unidade
entre os cristãos, esse é o seu objectivo, Santo objectivo, sem dúvida, meu
senhor, resta saber por que meios o alcançará, Se o objectivo é santo, santos serão
também os meios de que se servir, respondeu o rei com certa aspereza, Peço
perdão a vossa alteza, além disso, Além disso, quê, Rogo-vos que me dispenseis
da visita ao salomão, sinto que hoje não seria uma companhia agradável para
vossa alteza, Não dispenso, preciso absolutamente da sua presença no cercado,
Para quê, meu senhor, se não estou a ser demasiado confiado em perguntar, Não
tenho luzes para perceber se vai acontecer o que chamou acto poético, respondeu
o rei com um meio sorriso em que a barba e o bigode desenhavam uma expressão maliciosa,
quase mefistofélica, Espero as suas ordens, meu senhor, Sendo cinco horas,
quero quatro cavalos à porta do palácio, recomende que aquele que montarei seja
grande, gordo e manso, nunca fui de cavalgadas, e agora ainda menos, com esta
idade e os achaques que ela trouxe, Sim, meu senhor, E escolha-me bem os
pajens, que não sejam daqueles que se riem por tudo e por nada, dá-me vontade de
lhes torcer o pescoço, Sim, meu senhor. Só partiram passadas as cinco horas e
meia porque a rainha, ao saber da excursão que se estava preparando, declarou
que também queria ir. Foi difícil convencê-la de que não tinha qualquer sentido
fazer sair um coche só para ir a belém, que era onde havia sido levantado o
cercado para o salomão. E certamente, senhora, não quererá ir a cavalo, disse o
rei, peremptório, decidido a não admitir qualquer réplica. A rainha acatou a
mal disfarçada proibição e retirou-se murmurando que salomão não tinha, em todo
o portugal, e mesmo em todo o universo mundo, quem mais lhe quisesse. Via-se
que as contradições do ser iam em aumento. Depois de ter chamado ao pobre animal
besta sustentada à argola, o pior dos insultos para um irracional a quem na
índia tinham feito trabalhar duramente, sem soldada, anos e anos, catarina de
áustria exibia agora assomos de paladino arrependimento que quase a tinham
levado a desafiar, pelo menos nas formas, a autoridade do seu senhor, marido e
rei. No fundo tratava-se de uma tempestade num copo de água, uma pequena crise
conjugal que inevitavelmente se há-de desvanecer com o regresso do estribeiro-mor,
seja qual for a resposta que trouxer. Se o arquiduque aceitar o elefante, o
problema resolver-se-á por si mesmo, ou melhor, resolvê-lo-á a viagem para
viena, e, se não o aceitar, então será caso para dizer uma vez mais, com a
milenária experiência dos povos, que, apesar das decepções, frustrações e
desenganos que são o pão de cada dia dos homens e dos elefantes, a vida
continua. Salomão não tem nenhuma ideia do que o espera. O estribeiro-mor, emissário
do seu destino, cavalga em direcção a valladolid, já, refeito do mau resultado
da tentativa feita para dormir em cima da montada, e o rei de portugal, com a
sua reduzida comitiva de secretário e pajens, está a chegar à praia de belém, à
vista do mosteiro dos jeronimitas e do cercado de salomão. Dando tempo ao
tempo, todas as coisas do universo acabarão por se encaixar umas nas outras». In
José Saramago, A Viagem do Elefante, Círculo de Leitores, 2008, ISBN
978-972-424-375-7.
Cortesia
de CLeitores/JDACT