terça-feira, 16 de junho de 2015

A Viagem do Elefante. José Saramago. «Literatura em estado puro, idioma, talento sem atavios, uma tarefa própria de um virtuoso cervantino, sobre a estrutura da grande metáfora da vida; a viagem como trânsito sob as intempéries»

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«(…) Em dialéctica e em resposta pronta ninguém ganha a vossa alteza, Pois olhe que não falta por aí quem diga que as fadas que presidiram ao meu nascimento não me fadaram para o exercício das letras, Nem tudo são letras no mundo, meu senhor, ir visitar o elefante salomão neste dia é, como talvez se venha a dizer no futuro, um acto poético, Que é um acto poético, perguntou o rei, Não se sabe, meu senhor, só damos por ele quando aconteceu, Mas eu, por enquanto, só tinha anunciado a intenção de visitar o salomão, Sendo palavra de rei, suponho que terá sido o bastante, Creio ter ouvido dizer que, em retórica, chamam a isso ironia, Peço perdão a vossa alteza, Está perdoado, senhor secretário, se todos os seus pecados forem dessa gravidade, tem o céu garantido, Não sei, meu senhor, se este será o melhor tempo de ir para o céu, Que quer isso dizer, Vem aí a inquisição (maldita), meu senhor, acabaram-se os salvo-condutos de confissão e absolvição, A inquisição (maldita) manterá a unidade entre os cristãos, esse é o seu objectivo, Santo objectivo, sem dúvida, meu senhor, resta saber por que meios o alcançará, Se o objectivo é santo, santos serão também os meios de que se servir, respondeu o rei com certa aspereza, Peço perdão a vossa alteza, além disso, Além disso, quê, Rogo-vos que me dispenseis da visita ao salomão, sinto que hoje não seria uma companhia agradável para vossa alteza, Não dispenso, preciso absolutamente da sua presença no cercado, Para quê, meu senhor, se não estou a ser demasiado confiado em perguntar, Não tenho luzes para perceber se vai acontecer o que chamou acto poético, respondeu o rei com um meio sorriso em que a barba e o bigode desenhavam uma expressão maliciosa, quase mefistofélica, Espero as suas ordens, meu senhor, Sendo cinco horas, quero quatro cavalos à porta do palácio, recomende que aquele que montarei seja grande, gordo e manso, nunca fui de cavalgadas, e agora ainda menos, com esta idade e os achaques que ela trouxe, Sim, meu senhor, E escolha-me bem os pajens, que não sejam daqueles que se riem por tudo e por nada, dá-me vontade de lhes torcer o pescoço, Sim, meu senhor. Só partiram passadas as cinco horas e meia porque a rainha, ao saber da excursão que se estava preparando, declarou que também queria ir. Foi difícil convencê-la de que não tinha qualquer sentido fazer sair um coche só para ir a belém, que era onde havia sido levantado o cercado para o salomão. E certamente, senhora, não quererá ir a cavalo, disse o rei, peremptório, decidido a não admitir qualquer réplica. A rainha acatou a mal disfarçada proibição e retirou-se murmurando que salomão não tinha, em todo o portugal, e mesmo em todo o universo mundo, quem mais lhe quisesse. Via-se que as contradições do ser iam em aumento. Depois de ter chamado ao pobre animal besta sustentada à argola, o pior dos insultos para um irracional a quem na índia tinham feito trabalhar duramente, sem soldada, anos e anos, catarina de áustria exibia agora assomos de paladino arrependimento que quase a tinham levado a desafiar, pelo menos nas formas, a autoridade do seu senhor, marido e rei. No fundo tratava-se de uma tempestade num copo de água, uma pequena crise conjugal que inevitavelmente se há-de desvanecer com o regresso do estribeiro-mor, seja qual for a resposta que trouxer. Se o arquiduque aceitar o elefante, o problema resolver-se-á por si mesmo, ou melhor, resolvê-lo-á a viagem para viena, e, se não o aceitar, então será caso para dizer uma vez mais, com a milenária experiência dos povos, que, apesar das decepções, frustrações e desenganos que são o pão de cada dia dos homens e dos elefantes, a vida continua. Salomão não tem nenhuma ideia do que o espera. O estribeiro-mor, emissário do seu destino, cavalga em direcção a valladolid, já, refeito do mau resultado da tentativa feita para dormir em cima da montada, e o rei de portugal, com a sua reduzida comitiva de secretário e pajens, está a chegar à praia de belém, à vista do mosteiro dos jeronimitas e do cercado de salomão. Dando tempo ao tempo, todas as coisas do universo acabarão por se encaixar umas nas outras». In José Saramago, A Viagem do Elefante, Círculo de Leitores, 2008, ISBN 978-972-424-375-7.

Cortesia de CLeitores/JDACT