segunda-feira, 8 de junho de 2015

O Labirinto da Saudade. Eduardo Lourenço. «Os portugueses se atormentam, se perseguem e se matam uns aos outros, por não terem entendido que o reino, tendo feito grandes conquistas, viveu por mais de três séculos do trabalho dos escravos, e que perdidos os escravos era preciso…»

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«Cumpriu-se o mar e o império se desfez. Senhor falta cumprir-se Portugal». In Mensagem

«Os portugueses se atormentam, se perseguem e se matam uns aos outros, por não terem entendido que o reino, tendo feito grandes conquistas, viveu por mais de três séculos do trabalho dos escravos, e que perdidos os escravos era preciso criar uma nova maneira de existência, criando os valores pelo trabalho próprio». In Mouzinho da Silveira, 1832

«... também esse (Antero) consultou Charcot. De nada lhe valeu, diga-se de passagem, pois a sua doença continua ainda hoje a ser para nós um mistério». In Armando Silva Carvalho, Portuguex

«… No país vizinho existe há muito uma reflexão tão generalizada e tão obsessiva em torno da temática do ser espanhol, e do perfil do destino hispânico, que uma ensaísta pôde organizar uma nutrida antologia subordinada ao título de Preocupación por España. À primeira vista, os diversos ensaios e artigos parecem relevar dessa mesma temática, transferida para Portugal. Tal não foi, nem é, o pensamento que articula as nossas considerações. Essa famosa preocupação com Espanha de ressaibo unamuniano e muito século XIX, como diria Ortega, tem qualquer coisa de suspeito pelo egotismo e o clima de ressentimento de que procede. Por outro lado, a Espanha tem problemas de autodefinição nacional, dada a célebre invertebralidade diagnosticada por Ortega. O nosso caso é outro: tivemos sempre uma vértebra supranumerária, vivemos sempre acima das nossas posses, mas sem problemas de identidade nacional propriamente ditos. A nossa questão é a da nossa imagem enquanto produto e reflexo da nossa existência e projecto históricos ao longo dos séculos e em particular na época moderna em que essa existência foi submetida a duras e temíveis privações. O assunto próprio do nosso livro é pois menos o da preocupação por Portugal, preocupação que está inclusa por definição em todas as tentativas de autognose, embora sem o relento narcisista de saber ou sofrer à Unamuno pelo lugar que ocupamos no mundo, que o de uma imagologia, quer dizer, um discurso crítico sobre as imagens que de nós mesmos temos forjado. Essas imagens são de duas espécies: uma diz respeito àquilo que, por analogia com o que se passa com os indivíduos, se poderia chamar esquema corporal, imagem condicionante do agir colectivo cuja leitura só à rebours pode ser feita, pois são os actos decisivos dessa colectividade que permitem induzi‑la; a outra é de segundo grau e constituem-na as múltiplas perspectivas, inumeráveis retratos que consciente ou inconscientemente todos aqueles que por natureza são vocacionados para a autognose colectiva (artistas, historiadores, romancistas, poetas) vão criando e impondo na consciência comum. Por gosto, por vocação, mas também por decisão intelectual fundamentada, este nosso primeiro esboço de imagologia portuguesa é quase exclusivamente centrado sobre imagens de origem literária e em particular para a época moderna, naquelas que por uma razão ou por outra alcançaram uma espécie de estatuto mítico, pela voga, autoridade e irradiação que tiveram ou continuam a ter.
Embora o meu interesse pela imagem de Portugal, e se se quiser, em particular, a preocupação pelo estatuto cultural que nos é próprio, tenham estado sempre presentes ao longo da minha reflexão avulsa, desde o primeiro volume de Heterodoxia, a decisão de exumar uma boa parte das considerações deste novo livro prende-se, por um lado, à mudança histórica dos últimos quatro anos, como é óbvio, por outro, à circunstância aleatória da leitura recente de livros de índole diversa, mas todos exprimindo uma vontade de renovação da imagerie habitual da realidade portuguesa. Citarei ao acaso e sem hierarquia de assunto ou valor os livros de José Cutileiro, Ricos e Pobres no Alentejo, Casas Pardas, de Maria Velho da Costa, Portuguex, de Armando Silva Carvalho, este último centrado com uma acuidade e uma originalidade manifestas, como o ainda inédito e próximo romance de Almeida Faria, na subversão a todos os níveis da mitologia cultura lusíada e na tentativa de reformulação em termos simbólicos, os únicos próprios da escrita romanesca, de uma imagem interna da aventura nacional e, para lá, ou a par dela, da descoberta de uma nova e sempre possível passagem do Nordeste capaz de unir os incomunicáveis continentes que tempo, opressão e destino criaram no interior do nosso tão ingénuo e fabuloso diálogo mudo de nós connosco mesmos». In Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português, Gradiva, Lisboa, 2000, ISBN 978-972-662-765-4.

Cortesia Gradiva/JDACT