«Cumpriu-se o mar e o império se desfez.
Senhor falta cumprir-se Portugal». In Mensagem
«Os portugueses se atormentam, se perseguem e se
matam uns aos outros, por não terem entendido que o reino, tendo feito grandes
conquistas, viveu por mais de três séculos do trabalho dos escravos, e que
perdidos os escravos era preciso criar uma nova maneira de existência, criando
os valores pelo trabalho próprio». In Mouzinho da Silveira, 1832
«... também esse (Antero) consultou Charcot. De nada
lhe valeu, diga-se de passagem, pois a sua doença continua ainda hoje a ser
para nós um mistério».
In
Armando Silva Carvalho, Portuguex
«… No país
vizinho existe há muito uma reflexão tão generalizada e tão obsessiva em torno
da temática do ser espanhol, e do
perfil do destino hispânico, que uma ensaísta pôde organizar uma nutrida
antologia subordinada ao título de Preocupación por España. À primeira
vista, os diversos ensaios e artigos parecem relevar dessa mesma temática, transferida
para Portugal. Tal não foi, nem é, o pensamento que articula as nossas
considerações. Essa famosa preocupação com
Espanha de ressaibo unamuniano e muito século XIX, como diria Ortega, tem
qualquer coisa de suspeito pelo egotismo e o clima de ressentimento de que
procede. Por outro lado, a Espanha tem problemas de autodefinição nacional,
dada a célebre invertebralidade diagnosticada por Ortega. O nosso caso é outro:
tivemos sempre uma vértebra supranumerária, vivemos sempre acima das nossas
posses, mas sem problemas de identidade nacional propriamente ditos. A nossa
questão é a da nossa imagem enquanto produto e reflexo da nossa existência e projecto
históricos ao longo dos séculos e em particular na época moderna em que essa
existência foi submetida a duras e temíveis privações. O assunto próprio do
nosso livro é pois menos o da preocupação
por Portugal, preocupação que está inclusa por definição em todas as
tentativas de autognose, embora sem o relento narcisista de saber ou sofrer à
Unamuno pelo lugar que ocupamos no
mundo, que o de uma imagologia, quer dizer, um discurso crítico sobre as
imagens que de nós mesmos temos forjado. Essas imagens são de duas espécies: uma diz respeito àquilo que, por
analogia com o que se passa com os indivíduos, se poderia chamar esquema corporal, imagem
condicionante do agir colectivo cuja leitura só à rebours pode ser feita, pois são os actos decisivos dessa colectividade
que permitem induzi‑la; a outra é de segundo grau e constituem-na as múltiplas
perspectivas, inumeráveis retratos que consciente ou inconscientemente todos
aqueles que por natureza são vocacionados para a autognose colectiva (artistas,
historiadores, romancistas, poetas) vão criando e impondo na consciência comum.
Por gosto, por vocação, mas também por decisão intelectual fundamentada, este
nosso primeiro esboço de imagologia
portuguesa é quase exclusivamente centrado sobre imagens de origem
literária e em particular para a época moderna, naquelas que por uma razão ou por
outra alcançaram uma espécie de estatuto mítico, pela voga, autoridade e
irradiação que tiveram ou continuam a ter.
Embora
o meu interesse pela imagem de Portugal, e se se quiser, em particular, a preocupação pelo estatuto cultural que nos é
próprio, tenham estado sempre presentes ao longo da minha reflexão avulsa,
desde o primeiro volume de Heterodoxia, a decisão de exumar uma boa parte das considerações
deste novo livro prende-se, por um lado, à mudança histórica dos últimos quatro
anos, como é óbvio, por outro, à circunstância aleatória da leitura recente de
livros de índole diversa, mas todos exprimindo uma vontade de renovação da imagerie habitual da realidade
portuguesa. Citarei ao acaso e sem hierarquia de assunto ou valor os livros de
José Cutileiro, Ricos e Pobres no Alentejo, Casas Pardas, de Maria Velho da
Costa, Portuguex, de Armando Silva Carvalho, este último centrado com uma
acuidade e uma originalidade manifestas, como o ainda inédito e próximo romance
de Almeida Faria, na subversão a todos os níveis da mitologia cultura lusíada e
na tentativa de reformulação em termos simbólicos, os únicos próprios da
escrita romanesca, de uma imagem interna da aventura nacional e, para lá, ou a par
dela, da descoberta de uma nova e sempre possível passagem do Nordeste capaz de
unir os incomunicáveis continentes que tempo, opressão e destino criaram no
interior do nosso tão ingénuo e fabuloso diálogo mudo de nós connosco mesmos». In
Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino
Português, Gradiva, Lisboa, 2000, ISBN 978-972-662-765-4.
Cortesia Gradiva/JDACT