Jamais houve homem menos
maquiavélico do que Maquiavel. In Villari
Maquiavel, o prisioneiro do maquiavelismo
«(…) Mas mais: é que há quem esqueça, ou por sistema pareça não querer
lembrar, que se Maquiavel não escreveu O Príncipe exactamente ao mesmo
tempo (a questão da cronologia nas obras de Maquiavel é controversa e a da articulação
destas duas obras ainda o é mais; a tese tradicional, segundo a qual a partir
de 1513 Maquiavel se teria
desdobrado na escrita de ambas, terminando os Discorsi em 1519,
encontra hoje cada vez menor apoio, apesar de Gilbert, em 1953, ter sustentado que pudesse ter existido um tratado sobre as
repúblicas escrito por Maquiavel anteriormente à redacção de O
Príncipe, pois no início do segundo capítulo desta obra refere que
sobre as repúblicas não falará aqui pois que já discorri demoradamente numa
outra vez; mais recentemente, uma outra teoria tentou, acentuando o caráter
incompleto e fragmentário dos Discorsi,
demonstrar que a sua preexistência relativamente a O Príncipe não exclui que
Maquiavel, após a sua redacção, não tivesse continuado a trabalhar naqueles,
uma vez que não parece curial que a menção com que se inaugura o referido
capítulo II fosse ao texto dos Discorsi tal como o conhecemos actualmente;
mais, as condições de penúria em que Maquiavel escreveu O Príncipe e o carácter
instrumental da obra como tentativa de obter apoio dos de Medici são pouco
compatíveis com a ideia de que ele se afadigasse, com ou sem Lívio, com um belo
tratado sobre as repúblicas) em que foi redigindo os seus Discursos sobre a Primeira Década
de Tito Lívio, obra dedicada ao estudo da República romana, parecendo
inseguro que tenha interrompido um livro para continuar o outro, a verdade é
que é o pai dos dois tomos, nos quais discorre respectivamente sobre
principados e sobre repúblicas: claro que o antimaquiavelismo tosco só sobrevive
pelo eclipse desta dualidade e pela crucificação de Niccolò Machiavelli à sua
obra politicamente incorreta, como
agora passou a ser moda dizer-se, e, assim, quase obnubila os Discorsi para focar, como se do
seu cérebro perverso só tivesse saído ruindade, O Príncipe.
Além disso, Maquiavel entrou no panorama editorial português pela porta
errada. Logo no princípio tudo lhe correu mal. Livro proibido desde o final
do século em que surgiu, antes de ser conhecida a sua obra foram conhecidas as
dos seus críticos: a censura dá liberdade aos detractores, garantindo-lhes
a impunidade de não permitir que outros aquilatem directamente o que eles vituperam.
O antimaquiavelismo teve, assim, o beneplácito do imprimatur que a
Maquiavel foi negado. Quando finalmente O Príncipe foi dado à estampa,
traduzido por Francisco Morais e editado em Coimbra, pela Atlântida, em 1935,viria antecedido com um
comprometedor artigo de Mussolini a servir de introdução, precisamente Benito
Mussolini, o Ducce da Itália fascista. Não haveria pior chaga a marcá-lo, para
a posteridade, de gafa intelectual.
A obra seria recolhida das bibliografias oficiais e lançadas as hostes
do pensamento de raiz católica no seu encalço. O estudo de Vergílio Taborda,
difundido em 1939, com a II Guerra
Mundial no seu alvor e as sombras nazi-fascistas a ocuparem o seu espaço vital
na cultura europeia, é disso concludente exemplo. Mas não ficaria por aí a
forte corrente contra as suas ideias. Também no campus do jurídico se travaria estrénua pugna, que passou dos
corredores das elites do pensamento para o combate de rua, ao nível mesmo das
insignificantes publicações. Ainda em 1913,
ao enfrentar o pensamento positivista que ameaçava agora fazer escola nas
cátedras e na prática judiciária, apelando em seu socorro para o valor ético do
direito natural, um modesto estudo, oferecido pelo autor aos alunos do Colégio
de João de Deus, no Porto, ante os dias
sombrios que vivemos, lembrava que Maquiavel
fez aquilo que nos nossos dias estava reservado ao positivismo jurídico:
interessou-se apenas pelo direito positivo, pelo direito observável e
apreensível em certo momento e em determinado lugar, relegando para o campo da
moral tudo o mais que existe no mundo normativo. Ignorou portanto o verdadeiro sentido
ontológico do direito que visa a realização da Justiça. Escreveu-o Manuel José
Carvalho Martins Almeida». In Nicolau Maquiavel, O Príncipe, Introdução
de José António Barreiros, tradução de Maria Jorge Figueiredo, Editorial
Presença, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-23-3951-3.
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