«(…) Não voltei a saber deles, dos Marinho, durante tempo, e julgo-me
autorizado a conjecturar que Payo não pescou no Grão-Sol até passarem aqueles
anos em que os submarinos andavam no mar e podiam avariar as redes com os seus ímpetos
cegos. Mas também aquela guerra acabou sem que tivéssemos saído disparados
pelos ares, e mais ou menos depois foram-se aconchegando as coisas, ou talvez
se desaconchegaram de outra maneira, pois muita gente andou de um lado para o
outro, eu entre ela, para ver se encontrava um cantinho ou uma esquina onde manter-me
erguido. Seria nos fins dos quarenta ou talvez no princípio dos cinquenta: eu
encontrava-me em Madrid sem a minha família. Uma vez escreveu-me Josefina
dizendo que Payo se casara com uma rapariga irlandesa, que tinham ido visitá-la
e que em breve passariam por Madrid: que os tratasse bem. E foi assim
que chegaram Payo e Aileen num comboio da manhã, um pouco fatigados, mas
contentes, com a ilusão inteira dos recém-casados. Vinham não tanto em lua-de-mel
quanto para que ela conhecesse um pouco do país. Acompanhei-os ao hotel,
deixei-os instalados e combinámos almoçar juntos, e jantar também, pois como
convidara eu ao almoço, insistiram em fazê-lo eles ao jantar. Observei que Payo
gostava da minha companhia e até, que estava um pouco envaidecido dela, e pelas
palavras de Alleen, compreendi que lhe falara de mim e de como me corriam as coisas
na profissão. As voltas que a vida dá!
Aileen era uma rapariga de grandes olhos cinzentos, a boca um pouco
irregular mas graciosa; falava um espanhol pitoresco mas expressivo, e de
certas matérias sabia mais que o marido, por exemplo das lendas e das histórias
celtas, que foi do que falámos principalmente, por insinuação minha, perante a
estupefacção de Payo, que fazia de espanto e de surpresa a sua cara de bom
rapaz ingénuo. Contaram-me também, muito por alto, a história do namoro, que
começara por causa de uma invernada forçosa em não sei que porto da costa sul
da Irlanda, perto de Limmerick, onde ela morava e tinha servido de intérprete
com o seu pouco espanhol. A mãe, ao princípio, ficou assustada com uma mulher
de tão longe, mas como Aileen é católica, acabou por transigir, espero que
cheguem a ser amigas. E Aileen acrescentou que, para o ser, sentia-se disposta a
não falar à frente dela nem de leprecauns nem de Finn McCool.
Falou-se depois que de Madrid iriam para Cuenca, onde estava Alfonso. Que faz ele lá?, perguntei-lhes.
Então Payo. explicou-me que Alfonso obtivera uma cadeira no Liceu, uma cadeira
de Geografia e História, e que estava lá colocado. Acrescentou ainda que era
violoncelista e diziam que tocava muito bem, mas aqui acabaram-se as
explicações. Perguntei-lhes se Alfonso não vinha nunca a Madrid. Payo encolheu
os ombros. Sei pouco dele agora. Quem o
vem ver todos os anos e passam um mês juntos é a mãe. Eu não o vejo desde que
acabou a guerra. Claro, é o tempo que tenho andado embarcado, e quando venho a
Espanha estou cá muito poucos dias. Aileen olhou-me longamente, e sem que
parecesse vir a propósito começou a falar das cunhadas Elvira e Sol, que já eram
umas mulherzinhas e que namoravam. Quando nos despedimos, não sei se no dia
seguinte, pedi-lhes que não deixassem de cumprimentar Alfonso da minha parte,
mesmo sem nos conhecermos, já que éramos colegas. Payo prometeu-me que o faria
e eu agradeci-lhe sem demasiado entusiasmo.
Não julguei que voltassem a Madrid, e menos tão cedo. Combináramos
vagamente ver-nos durante o Verão e Aileen chegara a esboçar o convite para que
passássemos todos, quer dizer eu e a minha família, uns dias em Vilaxuân, onde
a casa era grande e capaz e havia barcas e chatas para as crianças se
exercitarem na navegação à vista da mãe. Eu andava naquela altura metido num
árduo trabalho, provavelmente daqueles que se fazem com dificuldade insalvável
porque se aceitam sem gosto só para ganhar algum dinheiro. Lembro-me que quando
passados poucos dias Payo me telefonou e me pediu um encontro, trabalho me
custou não o adiar com um pretexto qualquer. Demorei certamente a responder
porque antes de eu dizer que sim ou que não, repetiu o pedido com palavras
diferentes, estas de súplica. Respondi-lhe que com certeza, que sim e que para
já, e combinámos encontrar-nos no hotel imediatamente, e para não me atrasar
apanhei um táxi (ainda era o tempo dos eléctricos ronceiros). Para já pensei
que alguma coisa teria sucedido a Aileen e que ele estivesse numa aflição, mas
quando entrei no vestíbulo onde me esperavam, vi o cabelo louro-cinza da rapariga
que lhe saltava por cima dos ombros. Também foi ela a primeira a avistar-me e
acenou-me ao longe com a mão. Payo levantou-se e veio ter comigo. Sossegou com
um sorriso e umas palavras de desculpa as minhas perguntas urgentes. Bem sabia eu que te ias assustar, disse Aileen
enquanto me beijava na face; e voltando-se para o marido acrescentou: eu não te disse? Payo parecia
envergonhado. Não é nada connosco,
esclareceu logo. Como vês, estamos bem. É
coisa do Alfonso, já te contamos, e se calhar não passa de suposições. Agora
toma alguma coisa, e obrigaram-me a beber um whisky irlandês fortíssimo». In
Gonzalo Torrente Ballester, El Cuento de la Sirena, Dafne Ensueños, O Conto da
Sereia, Lenda dos Marinhos, Difel, Lisboa, 1986.
Cortesia de Difel/JDACT