«Porque nasceste quando a neve tombava?
Devias ter vindo quando o cuco
chamava.
Ou quando as uvas estão verdes
nas vinhas
ou pelo menos quando as lestas
andorinhas
voam para escapar
ao verão a acabar».
[…]
In
Christina Rossetti, A Dirge
«(…) As barreiras de metal e os tapumes
de plástico azul que rodeavam as obras na estrada tornavam muito mais difícil ver
para onde devia dirigir-se, porque ocultavam metade dos pontos de referência desenhados
no papel que tinha na mão. Atravessou a rua esventrada em frente a um prédio
alto de escritórios, identificado como Centre Point no seu mapa, e que parecia um
waffle gigantesco de cimento, com a sua
grelha densa de janelas quadradas uniformes, e encaminhou-se mais ou menos na direcção
de Denmark Street. Encontrou-a quase acidentalmente, seguindo por um beco estreito
chamado Denmark Place e saindo para uma rua curta cheia de fachadas de lojas
coloridas: montras pejadas de guitarras, de teclados e de todo o tipo de produtos
musicais efémeros. Umas barreiras vermelhas e brancas rodeavam outro buraco aberto
na estrada, e os trabalhadores com coletes fluorescentes saudaram Robin com assobios
logo de manhã, que ela fez de conta que não ouviu. Consultou o seu relógio. Como
tinha dado a margem de tempo usual para o caso de se perder, tinha chegado um quarto
de hora adiantada. A porta do escritório que ela procurava, pintada de preto e sem
quaisquer características especiais, ficava à esquerda do 12 Bar Café; o
nome do ocupante do escritório estava escrito numa tira de papel pautado colado
com fita-cola ao lado da campainha do segundo andar. Num dia normal, sem o anel
novinho em folha a brilhar-lhe no dedo, talvez ela tivesse achado aquele pormenor
desanimador; hoje, no entanto, o papel sujo e a tinta da porta a descascar eram,
tal como os vagabundos da noite anterior, meros pormenores pitorescos no pano
de fundo do seu fantástico romance. Olhou de novo para o relógio (a safira cintilou
e o seu coração deu um salto; veria aquela pedra a brilhar para a resto da sua vida)
e depois, num acesso de euforia, decidiu subir antes da hora e apresentar-se entusiasmada
a um trabalho que não tinha a mínima importância.
Estava a estender a mão para a campainha
quando a porta preta se abriu de rompante e saiu uma mulher de roldão para a rua.
Num estranho segundo estático, as duas olharam-se nos olhos, ambas a prepararem-se
para aguentar uma colisão. Os sentidos de Robin estavam especialmente alerta nesta
manhã encantada; a visão daquele rosto por uma fracção de segundo causou-lhe
uma tal impressão que, pensou ela, momentos depois de conseguirem evitar-se uma
à outra por uma unha negra e de a mulher de cabelo escuro se apressar a descer a
rua) virar a esquina e desaparecer da vista, poderia desenhá-la perfeitamente de
memória. Não foi só a extraordinária beleza do seu rosto que se lhe gravou na memória,
mas também a sua expressão: lívida, mas estranhamente agitada. Robin segurou na
porta antes de ela se fechar sobre as escadas acanhadas. Uma escadaria antiquada
de metal subia em espiral à volta de um elevador de gaiola igualmente
antiquado. Concentrando-se em evitar que os seus tacões altos ficassem presos nos
degraus de metal, subiu até ao primeiro patamar, passando por uma porta onde estava
pendurado um cartaz laminado e emoldurado a dizer Crawdy Graphics, e continuou a
subir. Foi só quando chegou junto à porta envidraçada no andar acima que Robin se
apercebeu, pela primeira vez, do tipo de negócio para onde a tinham enviado
como secretária. Ninguém na agência lhe tinha dito. O nome no papel ao lado da campainha
lá em baixo estava gravado no painel de vidro: C. B. Strike, e por baixo as palavras
Detective Privado». In Robert Galbraith, Quando o Cuco Chama, tradução de Ana Saldanha,
Maria Segurado e Rita Figueiredo, Editorial Presença, 2013, ISBN
978-972-235-153-9.
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