sábado, 25 de julho de 2015

O Livro Perdido das Origens de Portugal. 1089. Emílio Miranda. «Chegaria algum dia a desvendá-los? E àqueles que a cidade encerrava em si? Dividido entre a incerteza e o fascínio, sentiu-se de repente assaltado por um súbito temor. Porquê aquela impressão de que algo não estaria bem?»

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O arco e a flecha. Antemanhã, Dezembro de 1080
«(…) Sentiu não apenas o corpo devassado, mas para sempre a alma e o amor-próprio, dois nomes da mesma coisa que se chama identidade. A palha cheirava a urina e excrementos e foi com esse cheiro que ela ficou para sempre, por mais que se lavasse. Até nos sonhos e pesadelos tinha o mesmo cheiro; a tanto chega a repulsa por um acto de tal modo vil e ignóbil. Tudo se resumira a um única vez, mas tal tinha bastado para mudar a forma como via o mundo em que vivia e para mudar o seu definitivamente. Agora, enquanto chegava a si o corpinho morno do pequeno, fruto apenas do seu amor sentiu por momentos que apenas o cheiro cálido que dele emanava era capaz de afastar aquele outro, pútrido e asqueroso, que lhe ficara entranhado na alma. Silenciosamente se entregou ao pranto, desejando que Deus não permitisse jamais que outra mulher pudesse sentir o mesmo: sentimentos que se têm em momentos de desespero, pois, a manifestar-se, o poder divino devia ter em conta todas as vergonhas acontecidas no mundo, e não apenas aquelas. Â todas as que resultavam da prepotência e do abuso podia ser dado o nome de violação. Deus, suplicou, protege-me e protege o meu filho, por tudo quanto tens como mais sagrado! Ajuda-me a criá-lo; a ser o seu amparo e protecção... Talvez Deus não a tivesse escutado, pois a mulher morreria antes de o filho perfazer seis anos.

Ressurreição, Fevereiro/Março de 1089
Diz-se que enquanto um homem anda sobre a Terra, tem de estar em algum lugar. Esta parece ser uma verdade nua e crua, para a qual não haverá contestacão. Até porque, em última instância, espera a todos o lugar definitivo, onde finalmente repousam todos quantos alguma vez viveram. Mas os lugares são como os dias: nem sempre agradam de igual modo, e se há aqueles que poderiam ser comparáveis no grau de preferência, aos de sol, límpidos e serenos, a estes contrapõem-se, invariavelmente, os de borrasca ou tempestade, se outros, piores, não houver a que se possam chamar Inferno. Pois também estes, aziagos e de má memória, se repetem, em toda a existência, mais do que o desejado. Talvez por isso, supõe-se, Deus tenha conferido à Humanidade a capacidade de sonhar. Se é certo que não existe consenso quando se trata de apurar se esta capacidade é verdadeiramente uma benesse, ou se tem sido ela a responsável pela perdição de tantos, a verdade é que é o sonho a única forma de o homem se furtar às agruras da vida. A mente, o mais veloz alazão que sobre a Terra pode ser achado, mesmo não sendo provido de cascos e de crinas, nem de asas, como já se viu representado, está sempre disposto a partir à desfilada, levando consigo o corpo que cada um transporta, através de lugares que podem ser reconhecidos deste mundo ou de outros, além de todos os que possam ser imaginados...
Aquele era mágico! Tratava-se de uma cidade fantástica, de altas muralhas e grandiosos palácios, que se estendia a perder de vista. Em torno havia pomares, olivais, hortas e searas, ondulando à brisa cálida da tarde. Ou talvez não fosse da tarde, mas a verdade é que tinha essa ideia. Talvez porque o Sol aparentava ter passado o pico mais alto do firmamento, e descia agora em direcção à longínqua linha do horizonte. Essa linha, tão distante que se confundia com o céu, era também ela um local de múltiplos mistérios. Chegaria algum dia a desvendá-los? E àqueles que a cidade encerrava em si? Dividido entre a incerteza e o fascínio, sentiu-se de repente assaltado por um súbito temor. Porquê aquela impressão de que algo não estaria bem? Andava às voltas com esta nova dúvida quando viu o vulto surgir das sombras e caminhar na sua direcção. Alguns passos andados, tomou a forma de um ser etéreo, com feições de mulher, de cujas costas irrompiam asas. Maravilhado, duvidou!» In Emílio Miranda, 1089, O Livro Perdido das Origens de Portugal, Marcador Editora, 2015, ISBN 978-989-754-141-4.

Cortesia de MarcadorE/JDACT