«(…) Mas desde quando anda esse Bosta a tresfoliar? De quando
lhe vem essa tremenda vontade de cus e outros orifícios de pecado?, perguntava
nessa altura um franciscano interessado. Ninguém o sabe ao certo. A coisa, ao
que parece, dura há muito, a julgar por tantas vítimas encontradas... Frei
Nicolau, sempre o mais complacente nessas e noutras, expôs a sua tese que, ao
grupo ouvinte, soou como a mais descarada defesa de enrabador. Irmãos, faço
notar que Ataíde, a quem El-Rei com muito acerto trata por Bosta,
nunca teve a virilidade de quaisquer outros homens do reino. As Sagradas
Escrituras, aliás, não promovem em exclusivo o que é viril. Falam antes as Escrituras
de castidade e essa sempre referida ao coito e com a raça fêmea.
Um agostinho, apesar de culto, não recordando ao certo o que diziam de
coitos e coitados os textos sacros, arriscou: as Sagradas Escrituras falam do
espírito e da alma, da moral..., não podendo ter espaço para paneleiri…, se bem
entendo. Isso seria a pena do Diabo a escrever por entre as linhas dedicadas a
Deus. No grupo de homens santos sussurrava-se opiniões contrárias. Frei Nicolau
continuou: irmãos, faço notar que Ataíde sendo macho no nascer sempre evitou
comportar-se como tal. Sempre foi um adamado, um tímido, enrubescendo por dá cá
aquela palha e parecendo sempre alheio a sexos ou para a função em que, sendo
homem laical, podia empregar, livre e justamente, suas partes pendentes. Nunca
foi homem de homens, como é sabido serem alguns que o rodeiam e que não achando
graça em fêmea viram as costas a machos... Mas, nem por isso, foi homem de
mulheres, put… ou cortesãs mais acessíveis, nem mesmo das mais recatadas e
dissimuladas. Nunca se lhe viu descer mão em regaço ou subi-la em saiote disponível.
E como sabeis, nada disso falta em este reino e com fartura, graças a Deus que
pode não concordar mas que também nada há para que se não permita essa vida airada.
Uma vozearia tremenda alevantou-se. Serenada, deu ocasião a frei
Nicolau para continuar: vi muitas vezes Bosta, perdão, Ataíde ser
humilhado pelos demais, apenas por não se desbraguilhar como todos. E a nenhum
se virou. Se na parte das bragas nunca teve inchaço, faltava-lhe alguma coragem
que agora tomou não se sabe como, e esse como bem pode o diacho, o fero demo,
ter descoberto... E por não encarar no passado tais impulsos, terá Ataíde
agora decidido pôr-se em dia com o esburacar da carne alheia, assim de uma só
empreitada?, quis saber, em tom indignado, um velho clérigo de olhar jovem. O
que vos digo, irmãos, continuou frei Nicolau, é que Ataíde se anda
vingando em homens e mulheres do que antes nunca conseguiu por vontade natural.
Fura cus e outros ocos, a esmo, a coberto das sombras, porque à luz do dia só
sofreu reprovações. Faz justiça, talvez, com a pequena adaga, já que não lhe
chega o saber para furar os provocantes com outra espada.
A confusão entre os homens de Deus. O cardeal desejou, fervoroso, que a
Inquisição (maldita) não tardasse a
instalar-se no reino. De momento, muito lhe agradaria passar pelas chamas o
endemoninhado do panele… Quanto a mim, declarou um dos frades mais moralistas
do grupo, Ataíde está possuído pelo demónio e, ao dizê-lo, benzeu-se
três vezes, desenhando uma enorme cruz sobre o seu corpo tenso. Será de boa
monta exorcizá-lo!, ouviu-se exclamar. Eu próprio falarei com El-Rei!, disse
frei Nicolau. E, se for preciso, com o arcebispo. O arcebispo é que não!,
gritou, em desespero, o cardeal, que andava às avessas com o arcebispo Martinho,
até por este ser tolerante, por exemplo, em casos de sexo tresloucado. Dizia-se
que o arcebispo tivera vida muito dissoluta. O cardeal desconfiava até que a
mantivesse ainda, diferente da de Ataíde é certo, mas não menos activa e
folgazona». In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000,
ISBN 972-42-2392-2.
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