«Tratar
das necessidades da natureza, como escreve
Cícero, é entrar no domínio da obscenidade. Ora, o obsceno, que é uma palavra de
origem latina mas cuja etimologia é ainda obscura, designa tudo aquilo que é indecoroso
dizer ou ver, poemas, imagens, gestos, brincadeiras. Em Roma, a vida sexual
pertence ao domínio do que só diz respeito à própria pessoa, do que em princípio
não diz respeito aos outros, do que é proibido mostrar, dizer, porque isso vai contra
as aparências que a honra (dignitas)
exige que se preserve em público. Roma herda a divisão grega feita entre o domínio
público, as actividades cívicas, e o domínio privado, íntimo. A oposição entre a
esfera pública, aberta a todos e submetida à autoridade dos magistrados, e a
esfera privada é, assim, uma das oposições que estrutura solidamente a
sociedade romana. E a vida sexual representa a parte mais íntima desse espaço privado.
É a razão pela qual não existe propriamente um discurso romano sobre o amor e a
sexualidade, aliás, a noção de sexualidade
não existe no pensamento antigo. Quando se esboça uma forma de discurso a propósito
das coisas de Vénus (res Veneriae), e através do imaginário,
da invectiva, da caricatura, da deformação, ou então através de um discurso normativo,
jurídico, filosófico ou médico, que pode, por vezes, afastar-nos da realidade vivida.
Até Ovídio, relativamente ao qual
se disse que a sua obra, de todos os poemas eróticos da Antiguidade, oferece a conceptualização
e a representação da sexualidade mais bem conseguidas, respeita essa divisão de
espaços. Ele aceitaria fechar os olhos às múltiplas infidelidades da sua amante
Corina na condição de que ela não as ostentasse em público; Ovídio não lhe pede
que deixe de estar com outros amantes, mas simplesmente que cale os relatos dos
seus encontros: que loucura furiosa é dizer
em pleno dia aquilo que a noite oculta e contar em público aquilo que se faz em
segredo! Até as prostitutas, especifica o autor, aquelas que se entregam
ao primeiro que aparecer, afastam as pessoas e fecham o ferrolho atrás de si e do
seu cliente. Em A Arte de amar, compara o acto de amor com os cultos a mistérios
que exigem dos seus iniciados que respeitem a lei de silêncio absoluto.
Certamente que o acto sexual diz respeito a toda a gente, mas quer realizar-se em
segredo. Inclusivamente Vénus cobre com a
mão esquerda os seus charmes secretos, num gesto de pudor. Esta noção de pudor
continua a ser essencial até ao último, em data, dos poetas elegíacos augustianos:
ele lembra que os amores furtivos requerem um quarto fechado, se não em trevas
pelo menos numa semiobscuridade, e que as partes sexuais permaneçam veladas sob
uma peça de roupa.
Porém, infelizmente, a sua época já
não respeita o pudor de outrora e os jovens empenham-se a exibir em pleno dia as
conquistas sexuais da noite. Ovídio prefere a
fé inquebrantável dos mistérios para proteger os seus amores. O silêncio
é, portanto, a regra na sociedade romana, e continuará a sê-lo durante muito tempo.
Marcial atesta a sobrevivência do tabu do olhar sobre o acto sexual na época imperial,
quando lembra que a cortesã afasta as testemunhas
com uma cortina e um ferrolho, e [que] as brechas raramente são visíveis nos
lupanares do Summemmium. As escavações de Pompeia revelaram de facto a existência
de lupanares com quartos dotados de uma cama em alvenaria ao fundo, fechados por
uma cortina. Dois mitos testemunham igualmente o interdito do olhar sobre a nudez
do corpo desejável e sobre os prazeres do amor que daí decorrem. O caçador Acteão,
que viu o corpo nu de Diana enquanto esta se banhava, foi transformado pela deusa
em veado, acabando por ser perseguido pelos seus próprios cães, que não o reconheceram
e o fizeram em pedaços.
A interpretação sexual deste mito
do voyeurismo foi a que conheceu mais sucesso. No romance de Apuleio, Acteão é duplamente
culpado e sacrílego: por um lado, o seu olhar humano ousa dirigir-se ao divino e
maculá-lo; por outro, espia e surpreende o segredo do corpo feminino. E esse segredo,
ou, mais exactamente, a obscuridade do segredo feminino revelado na sua forma mais
aterradora, condena o caçador de desejos a tornar-se um olhar sem fala antes de
ser morto. Todavia, o mito de Psique e Cupido, relatado no coração das Metamorfoses de Apuleio, desloca essa
problemática do desejo e do olhar concupiscente para a problemática do
conhecimento, do amor e da beleza. Psique, fechada num palácio maravilhoso, recebe
todas as noites um marido desconhecido
que a proíbe de olhar para ele, sob pena de o perder para todo o sempre. Porém,
uma noite, Psique resolve transgredir o interdito e põe a descoberto o corpo daquele
que se revela como sendo Cupido, o deus dos desejos, Amor, o deus do amor. O palácio
de Cupido é o lugar simbólico da intimidade, do segredo que sugere o indizível.
Psique experimenta ali a solidão da prisão feliz, da gaiola dourada que preserva o mistério do amor, mistério sagrado que
apenas se produz à noite, numa escuridão que nenhuma luz deve dissipar, num lugar
desconhecido de todos. Quando Psique revela o corpo divino, não é o sexo masculino
que descobre, ela tem dele uma forma de conhecimento todas as noites, mas sim o
mistério da beleza divina e do amor. A bem dizer, acedemos aqui aos limites superiores,
espirituais e religiosos do espaço da sexualidade». In Géraldine Puccini-Delbey, A
vida sexual na Roma Antiga, 2007, Edições Texto e Grafia, tradução de Tiago
Marques, 2010, Lisboa, ISBN 978-989-828-515-7.
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