«Consiste
o livre-arbítrio em voluntariamente cumprir o fado». In Agostinho da Silva
«Teresa Távora Lorena. Assim me conhecem.
Assim me fizeram. Mulher que a História não esquecerá, quando ao patíbulo do juízo
dos leitores e estudiosos chamarem todos aqueles que mudaram o curso dos
acontecimentos de um povo, pelas piores razões, nos mais tortuosos meandros. De
mim recordarão que fui amante de Sua Majestade José I de Portugal e dos
Algarves. Mulher perigosamente bela, de uma volúpia cegante para os homens.
Lembrar-se-ão de que traí o meu marido Luís Bernardo Távora enquanto ele auxiliava
o seu pai nas mais diversas façanhas na Índia. Contarão as vezes em que me viram
trocar olhares em público com o rei, mesmo na presença da rainha. Adivinharão as
vezes em que me deitei com ele em leitos suados, gargalhando argentinamente às desgraças
alheias. Alvitrarão ligações perigosas com Sebastião José Carvalho Melo, que hoje
é também conde de Oeiras e marquês de Pombal por minha causa. Deitarão sortes
às minhas intenções. E condenar-me-ão indefinidas vezes, sem perdão possível,
pela morte de todos aqueles que, no dia 13 de Janeiro de1759, foram torturados e mortos, acusados
de atentarem contra a vida do rei, no famoso Processo dos Távoras, o mais facínora de todo o século XVIII.
Nesse dia vi morrer o meu marido, o meu irmão e sogro, sogra, cunhado, sobrinhos.
Vi serem presos familiares e amigos, homens, mulheres e crianças. Perdi também
eu a minha liberdade, presa ao nome Távora, que nesse dia foi arrancado da toponímia
e dos brasões que distinguiam a minha casa. Nesse dia deixei de ser marquesa. Deixei
de ser esposa. Deixei também de ser amante. Só não deixei de ser mulher.
Por isso, a todos quantos me vierem
a julgar, digo e assumo que não fui santa. Não
fui casta. Não pratiquei grandes obras. Não fui mãe. Tão-pouco fui uma esposa
fiel. Mas fui mulher. Na verdadeira acepção da palavra. Porque fui bela. Porque
fui sensual. Porque manipulei. Porque traí. Porque joguei. Mas não me condenem
sem ouvirem a minha verdade. Talvez Deus se tenha já arrependido de ter criado Eva
e sujeitado o homem ao pecado original. Ou talvez nós, mulheres, sejamos aquilo
que O diverte, enquanto faz tremer a terra e agita o mar para nos ver correr como
baratas tontas em busca de salvação. Por isso aceito, sim, que a História me
condene, mesmo depois de lerem porque fui como fui e fiz o que fiz. Aceito que falem
de mim com asco e continuem a desejar que eu nunca tivesse existido. Mas Deus,
que assim me fez, com esta minha natureza capaz de levar os homens a amar e a matar
com a mesma facilidade, que me condene apenas se for capaz de condenar aquilo que
um dia se atreveu a criar...
3
de Setembro de 1758
Popeia onde estás, minha Popeia? Perseguia-me
pelo quarto completamente nu, com a fita negra que habitualmente me segurava os
cabelos a cegar-lhe as vistas. Com os pés apoiados na cama, sentada na cabeceira
esculpida em França, observava-o em toda a sua ridicularidade. Como me tornara amante
de um rei que se entregava aos fetiches mais absurdos que lhe propunha, não o sabia
ao certo. Como não sabia também porque lhe sugeria tamanhos disparates, como andar
nu e vendado a fingir ser Nero, e eu Popeia, a amante do imperador que se tornou
imperatriz, história imortalizada na ópera de Monteverdi. Ou talvez o soubesse,
em parte. A vida ensinara-me, aos poucos e da pior maneira, que a ilusão pode ser
maior quando se tenta viver a realidade. Fugir dela, por raros momentos que fosse,
era para mim, naquele momento, a única forma de me manter verdadeira. Vai fazer de mim sua imperatriz?
Diga-me que sim, e encontrar-me-á... José
seguiu a minha voz até à cama onde o observava, mas chegou tarde de mais, porque
eu já havia fugido num salto para a suave chaise
longue. Eu faço de si o que quiser, Popeia. Só tem de se entregar nos meus braços.
Aproximei-me dele também de corpo nu, definitivamente mais elegante nas formas e
nos movimentos, ainda que igualmente ridícula na absurda fantasia. A sua mulher
Otávia e o meu marido Otão unir-se-ão, para nos destruir, disse-lhe, rindo.
Mas
se o nosso amor é indestrutível... Eu sou imperador e vou fazer de si imperatriz.
Quem se atrever a atravessar-se no meu caminho, morrerá às minhas mãos. Sois cobarde
de mais para isso, meu imperador. Quereis apostar que não? Sentindo o calor do meu
corpo a roçar o seu, tentou segurar-me as ancas despidas, mas retirei-lhe uma e
outra mão, atrasando a inevitável consumação do desejo que o desassossegava. Queria-o
desassossegado um pouco mais, até aos limites do insuportável. Era assim que se
prendia um homem, fosse ele um criado, um rei ou um imperador, todos feitos da mesmíssima
matéria da cintura para baixo. Planeiam matar-me, e vós sabeis. O que fareis
vós, meu imperador, se eu morrer? Eu não a vou deixar morrer. Matarei quem for preciso,
já lhe disse. E morrer por mim?
Seria capaz?» In Sara
Rodi, Teresa Távora, A Amante do Rei, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN
978-989-626-482-6.
Cortesia
EsferaLivros/JDACT