O
cerco a Lima
«(…) Francisco Pizarro reservou
para si quatro solares, nos quais instalou a sua própria casa e o centro
nevrálgico do poder. Mandou plantar, para si, um pomar com um reservatório de água
de ladrilho e cal e fazer um telheiro de lata. Entregou dois solares vizinhos
ao seu irmão Hernando e cedeu ao seu meio-irmão Martín Alcántara um solar que
fazia esquina com a praça. Também reservou espaço para os futuros conventos de La
Merced, Santo Domingo e São Francisco. Foi ele próprio quem assentou as canas,
o colmo, a madeira e a pedra da modesta igreja matriz, cuja construção ordenou imediatamente,
dedicando-a a Nossa Senhora da Assunção, como era norma da vertente evangelizadora
da Conquista. Com o passar do tempo, as ruas que irradiavam da praça foram
adquirindo personalidade e nomes que também designavam ofícios. Assim, havia a rua
dos mercadores, a dos adeleiros e a das mantas.
No porto, a alguma distância do centro,
ergueram-se armazéns para as mercadorias que o mar prometia. O comércio externo
era indispensável ao novo mundo, simultaneamente transplante e invenção, a que aspiravam.
A enseada ou baía que formava o porto era visível dos solares da praça principal,
o que reconfortava Pizarro e os seus, pois isso lembrava-lhes de que, ao contrário
dos vales andinos em que tinham defrontado os Incas nos meses anteriores, ali
dispunham de uma via de fuga, caso fossem cercados, e também tinham a possibilidade
de se reabastecerem e rearmarem, no caso de serem necessários reforços humanos e
mecânicos. O mar era também uma via de comunicação com os territórios do Norte;
uma rota mais eficiente do que o caminho dos Incas, essa serpente que ziguezagueava pelo interior, contornando vales e
desfiladeiros, com todo o tipo de pontos de observação naturais e o perigo
permanente de se depararem com inimigos emboscados. Quando desceu a Lima, Francisca
ainda não tinha idade para ver as coisas mas para as cheirar, pelo que o seu primeiro
encontro com a capital ficou marcado pelo odor salgado do Pacífico, transportado
pela humidade do Verão. Esta é a tua nova casa, arvelita disse Pizarro afectuosamente a dona Inés Huaylas,
que, habituada, por herança cultural, a venerar determinados elementos da Natureza,
não achava demasiado estranho o seu marido e senhor tratá-la pelo diminutivo do
nome de uma ave das montanhas da Estremadura.
Pizarro podia ser analfabeto e
desprovido do refinamento renascentista, mas os seus reflexos defensivos denotavam
a sofisticação própria da capacidade para detectar ameaças. E Diego Almagro, o seu
grande companheiro na Conquista, com quem conseguira conquistar um império com
mais de um milhão de quilómetros quadrados, era uma ameaça! O Conquistador dedicava
boa parte do seu tempo à administração dos apetites dos seus lugares-tenentes, nomeadamente
através da divisão do ouro e da prata, da atribuição de comendas, da distribuição
de índios e das investiduras em cargos públicos nos cabidos das cidades que fundava.
Mas Almagro queria mais! Queria... queria ser Pizarro! A corte defraudara-o ao negar-lhe
o governo do território que ambicionara nos primeiros tempos da Conquista, para
não se sentir inferiorizado em relação a Pizarro, mas, no início de 1535, chegou a notícia de que o rei
decidira conceder-lhe o poder sobre os territórios do Sul, contíguos aos domínios
do seu companheiro e rival. Os limites exactos dos territórios sob a sua alçada
foram-se esfumando no caminho entre a Península Ibérica e o Peru, pelo que, em
vez de diminuir a tensão entre ambos, a boa nova acabou por a estimular. Ao enviar
Almagro ao Cuzco, que estava sob o controlo dos seus irmãos Juan e Gonzalo Pizarro,
o Conquistador acabou por fazer aumentar, sem querer, as ambições do seu rival.
É que era justamente Cuzco, a cidade emblemática de Tahuantinsuyo, que ele cobiçava.
E os seus apaniguados, aproveitando a inexactidão das fronteiras entre os dois territórios,
sussurravam-lhe dia e noite: o Cuzco pertence
à tua jurisdição! Era inevitável que a sua chegada à dita cidade o colocasse
em rota de colisão com os dois insolentes jovens de vinte anos, que dela haviam
desfrutado como infantes durante aqueles meses de ausência do Conquistador». In
Álvaro Vargas Llosa, A Primeira Mestiça, 2004, tradução de Luís Coutinho, Saída
de Emergência, 2013, ISBN 978-989-637-503-4.
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