«(…) Era, se preferem
assim, o namoro de dois espíritos prematuramente extenuados e que parecia ainda
mais perigoso que um amor de base puramente sexual. Sabendo até que ponto ela
amava Nessim, de quem eu próprio gostava enormemente, tal pensamento causava-me
horror. Estendida ao meu lado, ligeiramente ofegante, os seus grandes olhos
contemplavam o tecto onde voavam querubins de gesso. Disse-lhe então: … esta
aventura entre um pobre professor e uma dama da alta sociedade de Alexandria
não pode conduzir a nada. Isto vai acabar num escândalo mundano que nos
separará porque serás obrigada a pôr-me de parte. Justine não gostava de ouvir
as verdades. Voltou-se, descansou sobre um cotovelo, e, baixando os seus
magníficos olhos perturbados sobre os meus, olhou-me demoradamente. Não temos
qualquer alternativa neste assunto, disse ela naquela sua voz rouca que eu tanto
amava. Falas como se pudéssemos escolher. Tudo isto faz parte de um plano
preconcebido por qual quer ente que desconhecemos, talvez pela cidade ou por
outra parte de nós próprios. Que sei eu? Revejo-a na modista, diante dos
grandes espelhos múltiplos, dizendo: Olha! Cinco imagens diferentes da mesma
pessoa. Se eu fosse escritor tentaria descrever uma personagem assim, através
de uma espécie de visão prismática. Porque será que não podemos ver mais de um
perfil de uma só vez?
Ela boceja e acende um
cigarro; depois senta-se na cama e abraça os delicados tornozelos, começando a
recitar lentamente, com um delicioso trejeito, os maravilhosos versos do velho
poeta que falam de um amor muito e muito antigo, cujo encanto não suporta uma
tradução. E ouvindo-a recitar esses versos, pondo em cada sílaba grega,
deliberadamente irónica, uma espécie de ternura equívoca, descubro de repente o
estranho e ambíguo poder da cidade, a sua paisagem composta de um único plano
aluvial, o seu ar de perpétuo esgotamento e compreendo que ela é uma verdadeira
filha de Alexandria; isto é, nem grega, nem síria, nem egípcia, mas uma
híbrida, um complexo.
Que intensidade põe ela
ao recitar a passagem em que o velho lança fora a antiga carta de amor que
tanto o comoveu e exclama: … entro tristemente
no terraço; que nada venha distrair o curso dos meus pensamentos, nada, nem
mesmo o espectáculo dos movimentos insignificantes da cidade que amo, das suas
ruas e das suas lojas! E levanta-se, abre as persianas e debruça-se sobre a
varanda que deita para a cidade recamada de luzes, todo o seu ser tenso sob a
carícia do vento do entardecer que chega das planícies da Ásia; e, durante um
breve lapso, nem mesmo tem consciência do corpo que lhe pertence. Príncipe, Nessim é, evidentemente, um
gracejo; pelo menos para os comerciantes que o viam passar, digno e imperturbável,
no seu grande Rolls cor de prata. Para começar, ele não era muçulmano mas sim copta.
Todavia, o epíteto convinha-lhe admiravelmente, pois havia algo de principesco
no desdém que Nessim afectava perante a cupidez nos lucros, que é um traço
comum a todos os alexandrinos, mesmo nos mais ricos. E, contudo, os elementos
que formavam a sua reputação de excêntrico nada tinham de particularmente
notável para aqueles que tinham vivido fora do Levante. Só lhe interessava o
dinheiro para gastar; não tinha nenhuma garçonnière
e parecia ser absolutamente fiel a Justine, coisa de facto inaudita. No que
respeita ao dinheiro, era tão rico que lhe causava uma espécie de nojo, e nunca
trazia nenhum consigo. Gastava à árabe e passava vales aos comerciantes; os restaurantes
e os night-clubs aceitavam os seus
cheques. As suas dívidas eram regularmente pagas, e todas as manhãs, Selim, o
seu secretário, percorria de carro o itinerário que o amo seguira na véspera,
para liquidar todos os débitos acumulados.
Este estilo de vida, que derrotava os hábitos de servilismo e o
espírito provinciano dos habitantes da cidade, era considerado por estes uma espécie
de desprezo à europeia. Mas não se tratava de hábitos adquiridos pela educação;
Nessim tinha nascido com eles e, neste pequeno universo, cuja única razão de
existir parece ser o ganho, não encontrava nenhum alimento para o seu desejo de
doçura e contemplação. Não existia homem menos autoritário do que ele, e,
contudo, os seus actos provocavam comentários porque vinham marcados com o forte
selo da sua personalidade. As pessoas sentiam-se inclinadas a atribuir as suas
maneiras a uma educação estrangeira, quando, de facto, a Alemanha e a
Inglaterra o tinham profundamente desconcertado, tornando-o mais tarde incapaz
de se adaptar à vida da cidade. Da primeira, tinha colhido o gosto pela especulação
metafísica, em contradição com a natureza do espírito mediterrânico, ao passo
que Oxford tinha tentado transformá-lo num pedante e apenas conseguira desenvolver
as suas tendências filosóficas a ponto de o incapacitar para o culto da sua arte
predilecta: a pintura. Pensava e sofria muito, mas faltava-lhe a força necessária
para ousar, que é a condição essencial para realizar seja o que for». In Lawrence Durrell, Quarteto de Alexandria, 1957,
Justine, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, Publicações dom Quixote,
Lisboa, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.
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