quinta-feira, 20 de agosto de 2015

O Livro dos Perfumes Perdidos. M. J. Rose. «Ouviu-se então um estrondo. Era Napoleão a cair em cima do caixão de madeira, quebrando e estilhaçando a sua tampa. O perfumista escutara os rumores de que o general sofria de epilepsia, a mesma perturbação nervosa que afligira o herói dele, Júlio César»

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Alexandria. Egipto. 1799
«(…) L’Étoile não era presciente nem médium, sendo sensível apenas a uma coisa: ao cheiro. Fora por esse motivo que, aos vinte anos, em 1789, trocara Marie-Geneviève e Paris pelo ar quente e o calor do Egipto, para estudar os mesmerizantes e mágicos eflúvios daquela vetusta cultura. Porém, nada do que descobrira ao longo de todo aquele tempo se comparava com o que então segurava. De perto, o aroma era rico e penetrante, e L’Étoile sentiu-se flutuar para longe do túmulo, para o ar livre, sob a abóbada celeste, a coberto da Lua, até à margem de um rio onde podia sentir o vento e desfrutar do fresco da noite. Alguma coisa lhe estava a acontecer. Sabia quem era, Giles L’Étoile, filho do melhor perfumista e luveiro de Paris. E ali se encontrava ele, com o general Napoleão Bonaparte, num túmulo debaixo da terra, em Alexandria. No entanto, ao mesmo tempo, estava a ser transportado, sentado ao lado de uma mulher na margem de um largo e verde rio, sob a sombra das tamareiras. Sentia que conhecia aquela mulher, que a conhecera desde sempre, muito embora ela fosse uma estranha.
Era muito bela, alta e magra, com cabelo negro e espesso e olhos escuros cheios de lágrimas. O corpo dela, envolto numa fina túnica de algodão, era sacudido por soluços, e o som da sua tristeza atravessava-o. Soube, por instinto, que a origem, a causa daquela dor era algo que ele fizera ou não fizera, e que estava nas suas mãos mitigar o sofrimento dela. Tinha de fazer um sacrifício. Caso contrário, o destino dela ensombrá-lo-ia para toda a eternidade. Despiu o comprido manto de linho que usava sobre a saia escocesa e mergulhou uma ponta do tecido na água para lhe limpar as lágrimas. Ao inclinar-se por cima da água, entreviu o seu rosto reflectido na superfície. L’Étoile viu alguém que não reconheceu. Um homem mais jovem, com vinte e cinco anos, no máximo. A sua pele era mais escura e dourada. As suas feições mais pronunciadas em locais onde as do perfumista eram arredondadas, ao passo que os olhos dele eram castanho-escuros e não azul-claros. Reparem, escutou-se uma voz à distância, está aqui um papiro.
L’Étoile deu-se conta de uma voz vagamente familiar, era a voz de Abu. Mais premente, porém, foi o súbito ruído de cascos de cavalos. A mulher também os escutou, com o pânico bem evidente no rosto. Ele largou o manto e pegou-lhe na mão, fazendo-a levantar-se para a conduzir até um local seguro longe do rio onde ela pudesse ficar escondida e em segurança. Ouviu-se um grito. Alguém tombou por cima dele. Ouviu cerâmica a quebrar-se contra o chão de alabastro. L’Étoile estava de volta ao túmulo, e em vez do rosto belo e melancólico da mulher, olhava para Abu, segurando um espesso rolo contra o peito e de olhos cravados num vaso de barro partido. O cheiro colocara toda a gente numa espécie de transe e L’Étoile fora o primeiro a despertar dele. Em redor, o caos instalara-se. Os homens sussurravam, choravam e gritavam, falando em línguas que L’Étoile não entendia. Pareciam combater demónios invisíveis, debater-se com inimigos ocultos e retirar conforto de companheiros ocultos.
Que lhe acontecera? Que estava a acontecer aos outros homens? Um dos jovens trabalhadores egípcios, encostado à parede, sorria e cantava uma cantiga numa qualquer língua antiga. Outro estava deitado no chão a gemer; um terceiro esmurrava um atacante invisível. Dois dos eruditos não haviam sido afectados, mas observavam horrorizados a cena. Saurent, ajoelhado em oração, com uma expressão beatífica no rosto, falava em latim, recitando uma missa. O cartógrafo batia na parede com o punho, gritando vezes sem conta o nome de um homem. Os olhos de L’Étoile encontraram Napoleão. O general estava imóvel junto ao sarcófago, como que colado ao chão, olhando fixamente um local na parede como se fosse uma janela para uma paisagem distante. A sua pele estava mais pálida que o habitual e coberta de suor. Tinha um aspecto enfermiço.
Havia odores que podiam curar males e outros que podiam provocá-los, venenos que seduziam com a sua doçura antes de sugarem o último alento a quem os respirava. O pai de L’Étoile instruíra-o acerca de todos eles e advertira-o para os seus efeitos. Naquele momento, L’Étolle temia por si, pelo comandante e pelos homens reunidos naquela câmara. Teriam sido todos envenenados por um antigo aroma tóxico? Tinha de fazer alguma coisa. Agarrando numa pequena caixa dourada que se encontrava no meio de uma pilha de tesouros encostada à parede mais afastada, abriu-a, despejou o seu conteúdo, ouro e vidro colorido no chão, e depois, à pressa, enfiou o vaso de cerâmica ainda intacto no seu interior. Juntando à caixa os cacos do recipiente que o general deixara cair, L’Étoile fechou a tampa. O aroma ainda predominava no espaço, mas agora que os recipientes de perfume estavam fechados, o ar começou lentamente a clarear. L’Étoile observou que, um a seguir ao outro, os homens se recompunham e olhavam em redor, cada qual tentando perceber onde estava. Ouviu-se então um estrondo. Era Napoleão a cair em cima do caixão de madeira, quebrando e estilhaçando a sua tampa. O perfumista escutara os rumores de que o general sofria de epilepsia, a mesma perturbação nervosa que afligira o herói dele, Júlio César. O corpo do general era sacudido por convulsões e a boca borbulhava de espuma. O ajudante de campo correu para junto dele». In M. J. Rose, O Livro dos Perfumes Perdidos, tradução de Eugénia Antunes, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-039-3.

Cortesia de CAutor/JDACT