Alexandria.
Egipto. 1799
«(…)
L’Étoile não era presciente nem médium, sendo sensível apenas a uma
coisa: ao cheiro. Fora por esse motivo que, aos vinte anos, em 1789, trocara Marie-Geneviève e Paris
pelo ar quente e o calor do Egipto, para estudar os mesmerizantes e mágicos
eflúvios daquela vetusta cultura. Porém, nada do que descobrira ao longo de
todo aquele tempo se comparava com o que então segurava. De perto, o aroma era
rico e penetrante, e L’Étoile sentiu-se flutuar para longe do túmulo, para o ar
livre, sob a abóbada celeste, a coberto da Lua, até à margem de um rio onde
podia sentir o vento e desfrutar do fresco da noite. Alguma coisa lhe estava a
acontecer. Sabia quem era, Giles L’Étoile, filho do melhor perfumista e luveiro
de Paris. E ali se encontrava ele, com o general Napoleão Bonaparte, num túmulo
debaixo da terra, em Alexandria. No entanto, ao mesmo tempo, estava a ser
transportado, sentado ao lado de uma mulher na margem de um largo e verde rio,
sob a sombra das tamareiras. Sentia que conhecia aquela mulher, que a conhecera
desde sempre, muito embora ela fosse uma estranha.
Era muito bela, alta e magra, com
cabelo negro e espesso e olhos escuros cheios de lágrimas. O corpo dela, envolto
numa fina túnica de algodão, era sacudido por soluços, e o som da sua tristeza atravessava-o.
Soube, por instinto, que a origem, a causa daquela dor era algo que ele fizera
ou não fizera, e que estava nas suas mãos mitigar o sofrimento dela. Tinha de
fazer um sacrifício. Caso contrário, o destino dela ensombrá-lo-ia para toda a eternidade.
Despiu o comprido manto de linho que usava sobre a saia escocesa e mergulhou
uma ponta do tecido na água para lhe limpar as lágrimas. Ao inclinar-se por cima
da água, entreviu o seu rosto reflectido na superfície. L’Étoile viu alguém que
não reconheceu. Um homem mais jovem, com vinte e cinco anos, no máximo. A sua pele
era mais escura e dourada. As suas feições mais pronunciadas em locais onde as do
perfumista eram arredondadas, ao passo que os olhos dele eram castanho-escuros e
não azul-claros. Reparem, escutou-se uma voz à distância, está aqui um papiro.
L’Étoile deu-se conta de uma voz
vagamente familiar, era a voz de Abu. Mais premente, porém, foi o súbito ruído de
cascos de cavalos. A mulher também os escutou, com o pânico bem evidente no
rosto. Ele largou o manto e pegou-lhe na mão, fazendo-a levantar-se para a conduzir
até um local seguro longe do rio onde ela pudesse ficar escondida e em segurança.
Ouviu-se um grito. Alguém tombou por cima dele. Ouviu cerâmica a quebrar-se contra
o chão de alabastro. L’Étoile estava de volta ao túmulo, e em vez do rosto belo
e melancólico da mulher, olhava para Abu, segurando um espesso rolo contra o peito
e de olhos cravados num vaso de barro partido. O cheiro colocara toda a gente numa
espécie de transe e L’Étoile fora o primeiro a despertar dele. Em redor, o caos
instalara-se. Os homens sussurravam, choravam e gritavam, falando em línguas que
L’Étoile não entendia. Pareciam combater demónios invisíveis, debater-se com inimigos
ocultos e retirar conforto de companheiros ocultos.
Que lhe acontecera? Que estava a acontecer
aos outros homens? Um dos jovens trabalhadores egípcios, encostado à parede,
sorria e cantava uma cantiga numa qualquer língua antiga. Outro estava deitado no
chão a gemer; um terceiro esmurrava um atacante invisível. Dois dos eruditos não
haviam sido afectados, mas observavam horrorizados a cena. Saurent, ajoelhado em
oração, com uma expressão beatífica no rosto, falava em latim, recitando uma
missa. O cartógrafo batia na parede com o punho, gritando vezes sem conta o nome
de um homem. Os olhos de L’Étoile encontraram Napoleão. O general estava imóvel
junto ao sarcófago, como que colado ao chão, olhando fixamente um local na parede
como se fosse uma janela para uma paisagem distante. A sua pele estava mais pálida
que o habitual e coberta de suor. Tinha um aspecto enfermiço.
Havia
odores que podiam curar males e outros que podiam provocá-los, venenos que seduziam
com a sua doçura antes de sugarem o último alento a quem os respirava. O pai de
L’Étoile instruíra-o acerca de todos eles e advertira-o para os seus efeitos. Naquele
momento, L’Étolle temia por si, pelo comandante e pelos homens reunidos naquela
câmara. Teriam sido todos envenenados por um antigo aroma tóxico? Tinha de fazer
alguma coisa. Agarrando numa pequena caixa dourada que se encontrava no meio de
uma pilha de tesouros encostada à parede mais afastada, abriu-a, despejou o seu
conteúdo, ouro e vidro colorido no chão, e depois, à pressa, enfiou o vaso de
cerâmica ainda intacto no seu interior. Juntando à caixa os cacos do recipiente
que o general deixara cair, L’Étoile fechou a tampa. O aroma ainda predominava
no espaço, mas agora que os recipientes de perfume estavam fechados, o ar começou
lentamente a clarear. L’Étoile observou que, um a seguir ao outro, os homens se
recompunham e olhavam em redor, cada qual tentando perceber onde estava. Ouviu-se
então um estrondo. Era Napoleão a cair em cima do caixão de madeira, quebrando
e estilhaçando a sua tampa. O perfumista escutara os rumores de que o general sofria
de epilepsia, a mesma perturbação nervosa que afligira o herói dele, Júlio César.
O corpo do general era sacudido por convulsões e a boca borbulhava de espuma. O
ajudante de campo correu para junto dele». In M. J. Rose, O Livro dos Perfumes
Perdidos, tradução de Eugénia Antunes, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN
978-989-724-039-3.
Cortesia
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