O
arco e a flecha. Antemanhã, Dezembro de 1080
«(…)
Um mosteiro é, na sua essência, uma igreja onde os monges se entregam à oração
enquanto laboram. Um local que permite a um homem afastar-se do mundo mundano,
numa busca ansiosa pelo afago de Deus. Isto, quando não acontece que a tentação
ande à solta, na figura de um anjo em forma de mulher. Há dias que a rapariga o
aliciava, mas ele conseguira até então furtar-se aos seus avanços. Até quando? Não podia negar o
efeito que ela exercia sobre si. O seu sorriso era insinuante e o ondular do
seu corpo hipnotizava-o. Ainda há pouco se cruzara com ela lá fora e não fora
capaz de mais do que fugir para o interior do templo onde se mantinha ajoelhado.
A noção de pecado estava tão enraizada na sua alma que o sentimento de agonia
era quase físico. Mas a carne era fraca, e um corpo feminino, uma tentação
demasiado forte para que um homem se lhe conseguisse furtar. Ainda mais quando
o corpo era jovem e palpitava de energia, calor e ânsia por se perder. De que modo conseguiria resistir-lhe?
A
mulher assemelhava-se a um anjo e sorria-lhe! Na sua dor reconheceu as feições
daquela que o trouxera ao mundo e que Deus lhe levara ia para três anos. E apesar
de a ter ouvido muitas vezes dizer de si que era uma mulher desengraçada,
sempre a tivera por bela, talvez porque é assim que normalmente um filho feliz
vê a própria mãe; mas agora, mais do que nunca, as suas feições resplandeciam,
irradiando sobre ele uma cálida luz que o deixou perplexo. Incapaz de dominar
as emoções que o assaltavam, imaginou-se a recordar os anos passados na sua
companhia. Enquanto fora viva, aquela que o gerara dedicara-lhe uma atenção
permanente, e a sua existência, apesar de simples e desprovida de luxos, havia
sido, tanto quanto possível, aprazível. Não obstante as dificuldades, naturais
na sua condição de mulher só e entregue a si própria, nunca lhe faltara com alimento
ou carinho, nem alguma vez deixara transparecer qualquer réstia de amargura ou
desgosto pela vida que os Céus lhe haviam reservado. Não se lembrava de a ter
visto desdenhar da sorte que lhe calhara. A mãe, a quem os pais haviam dado o
nome de Ermelinda, era uma mulher calada, triste tanto quanto é comum ser uma
mulher cuja existência foi desde sempre a de dedicar-se ao trabalho e à labuta,
desde a alva até à noite. Era criada de servir no solar dos Barrosões, onde ele
próprio tinha nascido num dia não muito longínquo.
Do
seu nascimento nada sabia, visto que a progenitora nunca lho referira, ou ele
nunca sentira qualquer curiosidade por saber algo. Pois o que interessam as minudências
da natividade, se todos, de uma ou outra forma, acabam por ser semelhantes? Uma
criança anseia apenas pela liberdade e pelos longos dias, até perceber que
existem alguns que acabam por ser extensos de mais. Isso conseguiu ele
perceber, apesar da sua pouca idade, não por si, pois tinha-os sempre como curtos
e velozes, mas pela mãe, precisamente, que tantas vezes via com ar cansado,
mesmo que não se queixasse ou lamuriasse, como outras a quem a sorte bafejara e
nunca cessavam com as queixas e lamentos. Protegera-o sempre de todas as
vicissitudes, como uma galinha protege o seu pinto. Apenas quando se referia ao
senhorio pressentia no seu olhar uma espécie de inquietação e, de uma forma que
nunca compreendera, mantivera-o sempre afastado dos poderosos que habitavam o
castelo, principalmente dos olhares e das influências do fidalgo, referindo-lhe
insistentemente que devia manter-se longe da sua mão. Porque seria, não o
suspeitava. Era verdade que o jovem fidalgo não granjeava as simpatias,
principalmente da gente pequena, a quem tratava com modos rudes e até, a mor
das vezes, de forma desumana. Mas, talvez porque o esforço maternal tenha sido
coroado de êxito, nunca pudera sentir na pele os efeitos dos seus abusos. Isso
acontecera apenas após a sua morte.
Sentindo-se
abraçado pela frescura daquele lugar sagrado, o jovem monge orava. Estava
ajoelhado aos pés do altar de Santo Ildefonso, para onde fugia agora a cada
passo. No entanto, nem ali parecia encontrar sossego. Bastava fechar os olhos
para que o rosto tomasse forma na sua mente. Poderia passar por angélico, não
fosse a forma tentadora como lhe sorria... Mas ver um anjo com feições femininas
era algo que estava para além da sua imaginação. Tanto quanto sabia, os anjos
eram seres, se não masculinos, como alguns pintores tinham por hábito
representar, pelo menos andróginos; desprovidos de sexo, e de feições anónimas,
se bem que perfeitas, como criaturas divinas que eram. Por isso, ver aquele de formas tão vincadamente
feminis, de seios fartos oscilando tentadoramente, só podia ser interpretado
como uma manifestação diabólica, uma insidiosa tentativa de corrupção da sua
alma. Havia uma parte de si que lhe doía e ele não conseguia perceber qual.
Tinha a sensação de que era o peito, mas tocou-se e verificou que estava
incólume». In Emílio Miranda, 1089, O Livro Perdido das Origens de Portugal,
Marcador Editora, 2015, ISBN 978-989-754-141-4.
Cortesia
de MarcadorE/JDACT