segunda-feira, 10 de agosto de 2015

O Livro Perdido das Origens de Portugal. 1089. Emílio Miranda. «Do seu nascimento nada sabia, visto que a progenitora nunca lho referira, ou ele nunca sentira qualquer curiosidade por saber algo. Pois o que interessam as minudências da natividade, se todos, de uma ou outra forma, acabam por ser semelhantes?»


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O arco e a flecha. Antemanhã, Dezembro de 1080
«(…) Um mosteiro é, na sua essência, uma igreja onde os monges se entregam à oração enquanto laboram. Um local que permite a um homem afastar-se do mundo mundano, numa busca ansiosa pelo afago de Deus. Isto, quando não acontece que a tentação ande à solta, na figura de um anjo em forma de mulher. Há dias que a rapariga o aliciava, mas ele conseguira até então furtar-se aos seus avanços. Até quando? Não podia negar o efeito que ela exercia sobre si. O seu sorriso era insinuante e o ondular do seu corpo hipnotizava-o. Ainda há pouco se cruzara com ela lá fora e não fora capaz de mais do que fugir para o interior do templo onde se mantinha ajoelhado. A noção de pecado estava tão enraizada na sua alma que o sentimento de agonia era quase físico. Mas a carne era fraca, e um corpo feminino, uma tentação demasiado forte para que um homem se lhe conseguisse furtar. Ainda mais quando o corpo era jovem e palpitava de energia, calor e ânsia por se perder. De que modo conseguiria resistir-lhe?
A mulher assemelhava-se a um anjo e sorria-lhe! Na sua dor reconheceu as feições daquela que o trouxera ao mundo e que Deus lhe levara ia para três anos. E apesar de a ter ouvido muitas vezes dizer de si que era uma mulher desengraçada, sempre a tivera por bela, talvez porque é assim que normalmente um filho feliz vê a própria mãe; mas agora, mais do que nunca, as suas feições resplandeciam, irradiando sobre ele uma cálida luz que o deixou perplexo. Incapaz de dominar as emoções que o assaltavam, imaginou-se a recordar os anos passados na sua companhia. Enquanto fora viva, aquela que o gerara dedicara-lhe uma atenção permanente, e a sua existência, apesar de simples e desprovida de luxos, havia sido, tanto quanto possível, aprazível. Não obstante as dificuldades, naturais na sua condição de mulher só e entregue a si própria, nunca lhe faltara com alimento ou carinho, nem alguma vez deixara transparecer qualquer réstia de amargura ou desgosto pela vida que os Céus lhe haviam reservado. Não se lembrava de a ter visto desdenhar da sorte que lhe calhara. A mãe, a quem os pais haviam dado o nome de Ermelinda, era uma mulher calada, triste tanto quanto é comum ser uma mulher cuja existência foi desde sempre a de dedicar-se ao trabalho e à labuta, desde a alva até à noite. Era criada de servir no solar dos Barrosões, onde ele próprio tinha nascido num dia não muito longínquo.
Do seu nascimento nada sabia, visto que a progenitora nunca lho referira, ou ele nunca sentira qualquer curiosidade por saber algo. Pois o que interessam as minudências da natividade, se todos, de uma ou outra forma, acabam por ser semelhantes? Uma criança anseia apenas pela liberdade e pelos longos dias, até perceber que existem alguns que acabam por ser extensos de mais. Isso conseguiu ele perceber, apesar da sua pouca idade, não por si, pois tinha-os sempre como curtos e velozes, mas pela mãe, precisamente, que tantas vezes via com ar cansado, mesmo que não se queixasse ou lamuriasse, como outras a quem a sorte bafejara e nunca cessavam com as queixas e lamentos. Protegera-o sempre de todas as vicissitudes, como uma galinha protege o seu pinto. Apenas quando se referia ao senhorio pressentia no seu olhar uma espécie de inquietação e, de uma forma que nunca compreendera, mantivera-o sempre afastado dos poderosos que habitavam o castelo, principalmente dos olhares e das influências do fidalgo, referindo-lhe insistentemente que devia manter-se longe da sua mão. Porque seria, não o suspeitava. Era verdade que o jovem fidalgo não granjeava as simpatias, principalmente da gente pequena, a quem tratava com modos rudes e até, a mor das vezes, de forma desumana. Mas, talvez porque o esforço maternal tenha sido coroado de êxito, nunca pudera sentir na pele os efeitos dos seus abusos. Isso acontecera apenas após a sua morte.
Sentindo-se abraçado pela frescura daquele lugar sagrado, o jovem monge orava. Estava ajoelhado aos pés do altar de Santo Ildefonso, para onde fugia agora a cada passo. No entanto, nem ali parecia encontrar sossego. Bastava fechar os olhos para que o rosto tomasse forma na sua mente. Poderia passar por angélico, não fosse a forma tentadora como lhe sorria... Mas ver um anjo com feições femininas era algo que estava para além da sua imaginação. Tanto quanto sabia, os anjos eram seres, se não masculinos, como alguns pintores tinham por hábito representar, pelo menos andróginos; desprovidos de sexo, e de feições anónimas, se bem que perfeitas, como criaturas divinas que eram. Por isso, ver aquele de formas tão vincadamente feminis, de seios fartos oscilando tentadoramente, só podia ser interpretado como uma manifestação diabólica, uma insidiosa tentativa de corrupção da sua alma. Havia uma parte de si que lhe doía e ele não conseguia perceber qual. Tinha a sensação de que era o peito, mas tocou-se e verificou que estava incólume». In Emílio Miranda, 1089, O Livro Perdido das Origens de Portugal, Marcador Editora, 2015, ISBN 978-989-754-141-4.

Cortesia de MarcadorE/JDACT