«No meu caso, um quadro é um somatório
de destruições».
In
Pablo Picasso
Pablo
Picasso. El Torín
Barcelona,
finais de Setembro de 1895
«Embarcaram com destino a Barcelona
no dia 13 de Setembro no Cabo Roca, um
pequeno cargueiro, depois de o seu pai solicitar a transferência e de passarem as
férias em Málaga. O seu tio Salvador, detentor do cargo de director de sanidade
do porto de Málaga, conseguira obter-lhes um desconto considerável no preço das
passagens, facto que, sem dúvida, encorajou o pai a ultrapassar o receio que
sempre sentira das viagens por mar. A travessia foi demorada e aborrecida, pois
o barco navegou junto à costa até Barcelona, fazendo escalas nos portos de Cartagena,
Alicante e Valência. Parecia que a viagem jamais chegaria ao fim. Para se entreter
durante o percurso Pablo trabalhava em pequenas tábuas, pintando e desenhando cenas
marítimas. José observava o filho enquanto este se entregava ao trabalho. Posso
ver? Pablo mostrou-lhe a tábua. O pai José observou-a em silêncio, enquanto os
seus olhos se iluminavam. O colorido do mar é bom. É um bom estudo, mas eu focar-me-ia
mais no paredão e nos barcos atracados, disse, devolvendo-lhe a tábua.
Pablo centrou-se no paredão, tal como
lhe havia instruído o pai, e pintou os barcos com grande detalhe. Já está, pai.
Magnífico. Esperemos que esta viagem termine em breve. Começa a ser um pouco aborrecida,
disse-lhe o pai, devolvendo-lhe o trabalho. Chegando a Barcelona, alojaram-se provisoriamente
num pequeno quarto na Rua Cristina, muito perto do porto em Barceloneta e a quatro
passos do edifício da Llotja, que albergava a Escola de Belas-Artes, onde José daria
aulas e onde matriculara o filho no final de Setembro. Barcelona fascinou o
rapaz. Era uma cidade grande, inovadora e industrial, com mais de meio milhão de
habitantes e em plena transformação, com edifícios modernos e avenidas com árvores
e iluminação. O melhor do local em que vivia era a magnífica praça de touros El Torín, a primeira de Barcelona, concebida
pelo arquitecto Josep Fontseré. A praça situava-se em Barceloneta, no bairro de
Ginebra, e visitava-a com o pai em muitas tardes para ver as corridas com um caderno
na mão. Naquela praça, um ano depois da sua inauguração, eclodira a revolta que
se estendeu pela cidade e que resultou na queima de conventos. O sucedido foi eternizado
na poesia popular:
El
dia de Sant Jaume de l’any trenta-cinc
hi
va haver gran broma dintre del Torín;
van sortir set toros tots van ser dolents,
això
va ser la causa de cremar els convents.
A praça foi fechada e, como represália,
houve planos para a converter em matadouro. As corridas continuariam a realizar-se
na Praça do Borne e, para ampliar a oferta taurina, idealizou-se a Praça do Rei.
Mas a afición da cidade de Barcelona
pela tauromaquia vinha de muito longe e ninguém se atreveu a converter El Torín num matadouro. Pablo entusiasmava-se
com o bairro e percorria-o esboçando tudo o que via: as mulheres dos pescadores
remendando as redes à porta das suas casas, estendendo a roupa ou vendendo peixe
fresco; os miúdos brincando no adro da igreja de San Miguel del Puerto; os pescadores
descarregando as caixas contendo as capturas do dia, e os banhistas, que vinham
celebrar o solstício de Verão banhando-se nus nos balneários Soler. Até mesmo
Amadeu I, de visita à cidade para as festas de La Merced, em 1871,
acabou nu e banhando-se em pelota. Transformara-se assim numa tradição monárquica,
já que a rainha Isabel II, em 1840 e
pelo menos em três outras ocasiões, se deslocara à praia de Barceloneta para se
submeter a banhos de ondulação por recomendação médica, com a finalidade de curar
um doloroso eczema.
Esta tarde iremos ao bairro de Ostia
para ver os touros, disse-lhe o seu pai numa ocasião. A expressão chocou o rapaz,
levando em conta as suas crenças religiosas e a pureza da sua linguagem. A Barceloneta,
filho. Também lhe chamam assim porque, ao que parece, quando fundaram o bairro existia
um estabelecimento propriedade de um italiano, que na fachada mandou pôr um letreiro
representando a sua terra natal, a cidade de Ostia. Aquela gente maravilhava Pablo
nos seus passeios. Como todas as gente do mar, viviam mais na rua do que em casa,
tomando ar fresco, jantando. Viviam em casas pequenas, muitas apenas com piso
térreo. O rapaz depressa deixou de ser um estranho. Onde te metes, Pablo? Passas
todo o dia por aí, com os teus amigos. Estive no paredão, na praia de
Barceloneta, nos alpendres, no molhe de pesca, no bairro antigo...
Não
pode ser, Pablo. Estás a negligenciar os estudos, repreendeu o seu pai com voz grave.
Olhe o que lhe trago, pai, disse, mostrando-lhe um caderno. José começou a folhear
as páginas lentamente, observando os desenhos que preenchiam o caderno. O rapaz
tinha boa mão para o esboço rápido, para captar uma grande variedade de tipos
humanos, de profissões e de ambientes. Fizeste tudo isto esta semana? Não, pai.
Fi-los hoje. Hoje?... A todos? Sim, pai. Estão muito bem, filho. Mas preferia que
não faltasses às aulas. Aborrecem-me, pai. Mas vou a todas. Sabe-o bem. Sim,
sobretudo às de desenho e modelo. Mas, o que me dizes das aulas de história da
arte e de estética?» In Esteban Martin, O Pintor de Sombras,
2008, tradução de Renato Carreira, Saída de Emergência, 2011, ISBN
978-989-637-310-8.
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