quinta-feira, 3 de setembro de 2015

A Alma das Pedras. Paloma Sanchez-Garnica. «Peço-vos apenas, Eminência, que me acompanheis ao lugar de que vos falo. Tenho a certeza de que, na clareira que existe junto ao humilde oratório que me serve de morada, ocorre um facto milagroso que sou incapaz de explicar sem a vossa douta opinião»

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Ano da Era do Senhor de 824. A origem de tudo
«(…) Porém, naquele dia tudo se tinha precipitado. Paio apresentara-se muito cedo na residência episcopal. Depois de ouvir a primeira missa da manhã celebrada pelo bispo na pequena capela que havia junto aos seus aposentos, à qual assistiram alguns membros do círculo da diocese iriense, o eremita passou, com Teodomiro, ao salão onde eram recebidas as visitas. Iam acompanhados de Martín Bilibio, o assistente pessoal do bispo. Teodomiro sentou-se diante de um janelão grande, do qual se avistava o mar. O dia apresentava-se claro e solarengo, após quase uma semana de chuvas ininterruptas. Respirou fundo, observando o horizonte, enquanto Paio aguardava pacientemente junto à porta, dependente de Sua Eminência achar por bem atendê-lo. Passados alguns instantes em silêncio, o bispo fez-lhe sinal para que se aproximasse com um ténue gesto da mão. Diz-me, Paio, o que te traz de novo por cá, perguntou, sem sequer desviar os olhos da janela, sabendo de antemão qual era a resposta. O eremita voltou a expor-lhe as suas alucinações. Tentou manter um discurso comedido, porém, desta feita, o seu fervor ultrapassava a necessidade de relatar ao seu interlocutor o que tinha a dizer-lhe. Teodomiro virou-se para ele e apercebeu-se de que no rosto avantajado daquele homem ardia uma segurança indubitável. O mesmo não só lhe manifestou as suas já conhecidas visões, como lhe asseverou, além disso, que um anjo enviado pelo Senhor lhe tinha falado em sonhos para lhe dizer que o túmulo do apóstolo S. Tiago Maior se encontrava no lugar onde ele via o campo de estrelas. Segundo Paio, o sinal era evidente. O bispo não podia continuar a recusar-se a responder a um chamamento tão claro do Senhor Todo-Poderoso. Não faça Vossa Eminência caso de mim, disse Paio, num tom cortês; considerai-me antes uma humilde ferramenta da obra de Deus na Terra. Fazei caso dos sinais que Ele vos mostra com esta revelação que eu me limito a fazer-vos chegar. Sou o instrumento de que se serve Nosso Senhor para vos fazer chegar tamanha notícia. Teodomiro olhou-o enfastiado.
Como compreenderás, Paio, se eu fizesse caso de todos os que, como tu, vêm dizer-me que testemunharam algum facto milagroso, que lhes apareceu diante a Virgem ou que julgam ter tido uma revelação divina não faria outra coisa em todo o dia senão tentar descobrir o que de verdadeiro ou falso podiam ter tais testemunhos. Sei que alguns de vós agem de boa-fé em tudo o que se refere às aparições e relíquias, mas também é verdade que alguns miseráveis se aproveitam das vossas santas intenções com o objectivo de se enriquecerem com a fé da Igreja e com a ignorância dos fiéis, apresentando relíquias, milagres ou aparições portentosas, tudo coisas impossíveis de verificar, mas às quais as pessoas se apegam candidamente como se fossem verdades reveladas.
Peço-vos apenas, Eminência, que me acompanheis ao lugar de que vos falo. Tenho a certeza de que, na clareira que existe junto ao humilde oratório que me serve de morada, ocorre um facto milagroso que sou incapaz de explicar sem a vossa douta opinião. Martín Bilibio aproximou-se do ouvido do bispo sem deixar de olhar de soslaio para o eremita. Eminência, sussurrou, nada tendes a perder em acompanhá-lo. O bosque de Libredón fica a pouca distância daqui e poderíamos lá chegar antes do anoitecer. Desta forma, comprovareis, finalmente, se há algo de certo nas suas insistentes palavras e se não houver, podereis despachá-lo definitivamente, com a consciência tranquila. A sugestão de Martín fê-lo vacilar. Olhou para o secretário e este assentiu com um ligeiro movimento da cabeça. Martín Bilibio era um monge instruído nas melhores bibliotecas monacais, tinha um carácter prudente e cauteloso e havia mais de dez anos que estava ao serviço do bispo. Com o tempo, acabou por se tornar o seu homem de confiança para a redacção de qualquer documento que tivesse de ser transcrito no bispado. O bispo ficou pensativo medindo as consequências da sua decisão. Dizes que esse campo de estrelas se vê à noite?, perguntou Teodomiro, pouco convencido». In Paloma Sanchez-Garnica, A Alma das Pedras, tradução de Miguel Coutinho, Saída de Emergência, 2010, ISBN 978-989-637-288-0.

Cortesia SEmergência/JDACT