Ano
da Era do Senhor de 824. A origem de tudo
«(…) Porém, naquele dia tudo se tinha
precipitado. Paio apresentara-se muito cedo na residência episcopal. Depois de ouvir
a primeira missa da manhã celebrada pelo bispo na pequena capela que havia junto
aos seus aposentos, à qual assistiram alguns membros do círculo da diocese
iriense, o eremita passou, com Teodomiro, ao salão onde eram recebidas as visitas.
Iam acompanhados de Martín Bilibio, o assistente pessoal do bispo. Teodomiro sentou-se
diante de um janelão grande, do qual se avistava o mar. O dia apresentava-se claro
e solarengo, após quase uma semana de chuvas ininterruptas. Respirou fundo,
observando o horizonte, enquanto Paio aguardava pacientemente junto à porta, dependente
de Sua Eminência achar por bem atendê-lo. Passados alguns instantes em
silêncio, o bispo fez-lhe sinal para que se aproximasse com um ténue gesto da mão.
Diz-me, Paio, o que te traz de novo por cá, perguntou, sem sequer desviar os olhos
da janela, sabendo de antemão qual era a resposta. O eremita voltou a expor-lhe
as suas alucinações. Tentou manter um discurso comedido, porém, desta feita, o seu
fervor ultrapassava a necessidade de relatar ao seu interlocutor o que tinha a dizer-lhe.
Teodomiro virou-se para ele e apercebeu-se de que no rosto avantajado daquele homem
ardia uma segurança indubitável. O mesmo não só lhe manifestou as suas já conhecidas
visões, como lhe asseverou, além disso, que um anjo enviado pelo Senhor lhe tinha
falado em sonhos para lhe dizer que o túmulo do apóstolo S. Tiago Maior se encontrava
no lugar onde ele via o campo de estrelas. Segundo Paio, o sinal era evidente.
O bispo não podia continuar a recusar-se a responder a um chamamento tão claro
do Senhor Todo-Poderoso. Não faça Vossa Eminência caso de mim, disse Paio, num
tom cortês; considerai-me antes uma humilde ferramenta da obra de Deus na Terra.
Fazei caso dos sinais que Ele vos mostra com esta revelação que eu me limito a fazer-vos
chegar. Sou o instrumento de que se serve Nosso Senhor para vos fazer chegar tamanha
notícia. Teodomiro olhou-o enfastiado.
Como compreenderás, Paio, se eu fizesse
caso de todos os que, como tu, vêm dizer-me que testemunharam algum facto
milagroso, que lhes apareceu diante a Virgem ou que julgam ter tido uma revelação
divina não faria outra coisa em todo o dia senão tentar descobrir o que de verdadeiro
ou falso podiam ter tais testemunhos. Sei que alguns de vós agem de boa-fé em tudo
o que se refere às aparições e relíquias, mas também é verdade que alguns
miseráveis se aproveitam das vossas santas intenções com o objectivo de se enriquecerem
com a fé da Igreja e com a ignorância dos fiéis, apresentando relíquias,
milagres ou aparições portentosas, tudo coisas impossíveis de verificar, mas às
quais as pessoas se apegam candidamente como se fossem verdades reveladas.
Peço-vos apenas, Eminência, que me
acompanheis ao lugar de que vos falo. Tenho a certeza de que, na clareira que
existe junto ao humilde oratório que me serve de morada, ocorre um facto milagroso
que sou incapaz de explicar sem a vossa douta opinião. Martín Bilibio aproximou-se
do ouvido do bispo sem deixar de olhar de soslaio para o eremita. Eminência, sussurrou,
nada tendes a perder em acompanhá-lo. O bosque de Libredón fica a pouca
distância daqui e poderíamos lá chegar antes do anoitecer. Desta forma,
comprovareis, finalmente, se há algo de certo nas suas insistentes palavras e se
não houver, podereis despachá-lo definitivamente, com a consciência tranquila. A
sugestão de Martín fê-lo vacilar. Olhou para o secretário e este assentiu com um
ligeiro movimento da cabeça. Martín Bilibio era um monge instruído nas melhores
bibliotecas monacais, tinha um carácter prudente e cauteloso e havia mais de
dez anos que estava ao serviço do bispo. Com o tempo, acabou por se tornar o
seu homem de confiança para a redacção de qualquer documento que tivesse de ser
transcrito no bispado. O bispo ficou pensativo medindo as consequências da sua
decisão. Dizes que esse campo de estrelas se vê à noite?, perguntou Teodomiro, pouco
convencido». In Paloma Sanchez-Garnica, A Alma das Pedras, tradução de Miguel
Coutinho, Saída de Emergência, 2010, ISBN 978-989-637-288-0.
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