domingo, 13 de setembro de 2015

A Brisa do Oriente. Paloma Sanchez-Garnica. «O enterro foi silencioso e rápido. Cumprindo a sua vontade expressa, a terra cobriu o corpo do defunto, que ia envolto numa manta de lã simples. Não quisera caixões nem madeiras que o isolassem da terra em que devia repousar»

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Dezembro. 1265
«(…) Partirei, tal como já aconteceu com outros muito melhores do que eu, e garanto-te que a vida seguirá o seu passo. Ninguém, seja o melhor ou o mais malvado dos homens, é imprescindível. A voz serena, tranquila, carregada de melancolia, escorria-lhe, embalada, por entre os lábios finos e embranquecidos, num grato murmúrio. Quero que me ouças bem, pois não sei de quanto tempo disponho..., nem sequer sei se disponho de algum, pediu, com os olhos enterrando-se nas rugas de uma expressão melancólica. Lembras-te da bolsa com que eu andava sempre? Claro. Está guardada no baú da biblioteca. Ficarás com a chave no momento em que eu morrer. Quando eu partir, quero que fiques com o conteúdo dessa bolsa. Farei como me pedis. É uma coisa que te deixo entregue, e não quero que passe pelas mãos de outros, nem sequer daquele que vier a substituir-me nas funções de abade. Ubertino assentiu com a cabeça. Farei como quereis. Guarda-a, sussurrou, cansado. É todo o meu património, meu querido Ubertino..., disse, com a voz embargando-se-lhe na garganta, a minha herança, a única coisa que posso deixar-te... Os seus olhos entristeceram e os lábios, trementes, voltaram a semicerrar-se-lhe, remetendo-se ao silêncio.
Não vos preocupeis, pater. Guardá-la-ei como se fosse o tesouro de uma criança. O ancião esboçou um ligeiro sorriso e permaneceu calado, envolto, para sempre, na letargia da espera, de que nunca mais tornou a emergir. O voltear monótono dos sinos anunciava que tinha chegado o fim. Outros monges entraram em silêncio, com os apetrechos necessários à preparação do corpo. Ubertino levantou-se e ajudou-os naquela tarefa. Lavaram e secaram o cadáver, de aspecto esquelético devido aos constantes jejuns que lhe tinham deixado a pele colada aos ossos. Vestiram-lhe a túnica branca e ficou pronto para ser velado. Fizeram tudo com o cuidado típico de quem maneja o corpo frágil e indefeso de um recém-nascido, como se a vida voltasse às suas origens, ao princípio de tudo. A manhã rompeu carregada de nuvens negras, prenúncio dos dias cinzentos e tristes que esperavam a comunidade. Começaram a cair alguns flocos brancos no preciso instante em que oito monges removiam o corpo do abade do edifício da enfermaria. Atravessaram o pátio principal e entraram pelo corredor do claustro que dava acesso ao templo. Entraram na igreja e dirigiram-se, solenes, ao túmulo, que já estava instalado diante do altar e sobre o qual depositaram o cadáver. Tinham sido acendidas centenas de velas a todo o comprimento do coro e em torno do presbitério. Os monges posicionaram-se diante das suas misericórdias e foi dado início aos cânticos dos salmos funerários, dirigidos pelo sacristão.
Tinha passado meio dia e o eco da morte já tinha chegado a todos os arredores, levado pelo rebate do sino. Durante todo o dia, homens, mulheres e crianças foram-se dirigindo ao templo para prestarem as suas homenagens particulares ao falecido abade. Ubertino tinha ficado sentado na primeira fila, junto ao túmulo, de onde podia observar o perfil pétreo e solene do cadáver. Entretanto, chegou uma freira idosa ao templo. Os seus olhos, claros como a água e tragados pelas maçãs salientes do rosto no vazio das órbitas oculares, observaram prudentemente o interior por um breve instante. Cobria o corpo diminuto com o hábito branco da ordem beneditina e tinha o rosto delimitado pela touca, que lhe apertava as feições envelhecidas. Havia poucos meses que tinha entrado naquela igreja. Olhou, receosa, para um lado e para o outro e, com o requiem de fundo entoado pelos monges, aproximou-se, prudente, do estrado sobre o qual jazia o corpo do abade. Ubertino fixou o olhar nela assim que a viu. Os olhos de ambos encontraram-se por um instante e o monge estremeceu perante aquele olhar. Ajustou a sua túnica de frade ao pescoço, pensando que os tremores se deviam ao frio que invadira o templo.
A mulher deteve-se diante de quem jazia, como se se tratasse de um Cristo dolente ali colocado para que o venerasse. Uma lágrima quase impercetível resvalou-lhe pela face. Pegou na mão inerte do abade. Ubertino levantou-se, alarmado, mas não saiu de onde se encontrava, como se tivesse ficado petrificado por uma espécie de força interior que o impedisse de interromper aquele momento entre os dois. A mulher olhou-o de soslaio e esboçou um sorriso melancólico. Depois, deu meia-volta e afastou-se. Ubertino tornou a sentar-se, desconcertado, vendo a idosa encaminhar-se para a porta com passos curtos e lentos, encurvada e pesarosa, até que acabou por a perder de vista. Olhou para o cadáver e perguntou-se quem poderia ser aquela mulher. Um estranho impulso fê-lo desejar sair dali a correr para lhe perguntar quem era, pois era evidente que conhecia o abade, mas a cerimónia fúnebre iniciava-se naquele instante e foi obrigado a manter-se no seu lugar. Nunca mais voltou a vê-la.
O enterro foi silencioso e rápido. Cumprindo a sua vontade expressa, a terra cobriu o corpo do defunto, que ia envolto numa manta de lã simples. Não quisera caixões nem madeiras que o isolassem da terra em que devia repousar. Sobre a tumba, foi colocada apenas uma simples cruz feita com dois paus de madeira de cedro, atados com uma corda. Depois, cada um dos monges afastou-se, pesaroso, para se dedicar aos seus afazeres habituais, interrompidos havia dias pela morte. A calma e o sossego pareceram regressar com o retomar implacável da vida pelos vivos e o inevitável abandono do defunto à solidão da morte». In Paloma Shanchez-Garnica, A Brisa do Oriente, 2009, tradução de Luís Coputinho, Saída de Emergência, 2012, ISBN 978-989-637-411-2.

Cortesia SEmergência/JDACT