Dezembro.
1265
«(…) Partirei, tal como já aconteceu
com outros muito melhores do que eu, e garanto-te que a vida seguirá o seu
passo. Ninguém, seja o melhor ou o mais malvado dos homens, é imprescindível. A
voz serena, tranquila, carregada de melancolia, escorria-lhe, embalada, por entre
os lábios finos e embranquecidos, num grato murmúrio. Quero que me ouças bem, pois
não sei de quanto tempo disponho..., nem sequer sei se disponho de algum, pediu,
com os olhos enterrando-se nas rugas de uma expressão melancólica. Lembras-te da
bolsa com que eu andava sempre? Claro. Está guardada no baú da biblioteca. Ficarás
com a chave no momento em que eu morrer. Quando eu partir, quero que fiques com
o conteúdo dessa bolsa. Farei como me pedis. É uma coisa que te deixo entregue,
e não quero que passe pelas mãos de outros, nem sequer daquele que vier a substituir-me
nas funções de abade. Ubertino assentiu com a cabeça. Farei como quereis. Guarda-a,
sussurrou, cansado. É todo o meu património, meu querido Ubertino..., disse, com
a voz embargando-se-lhe na garganta, a minha herança, a única coisa que posso deixar-te...
Os seus olhos entristeceram e os lábios, trementes, voltaram a semicerrar-se-lhe,
remetendo-se ao silêncio.
Não vos preocupeis, pater. Guardá-la-ei como se fosse o tesouro
de uma criança. O ancião esboçou um ligeiro sorriso e permaneceu calado, envolto,
para sempre, na letargia da espera, de que nunca mais tornou a emergir. O voltear
monótono dos sinos anunciava que tinha chegado o fim. Outros monges entraram em
silêncio, com os apetrechos necessários à preparação do corpo. Ubertino levantou-se
e ajudou-os naquela tarefa. Lavaram e secaram o cadáver, de aspecto esquelético
devido aos constantes jejuns que lhe tinham deixado a pele colada aos ossos.
Vestiram-lhe a túnica branca e ficou pronto para ser velado. Fizeram tudo com o
cuidado típico de quem maneja o corpo frágil e indefeso de um recém-nascido,
como se a vida voltasse às suas origens, ao princípio de tudo. A manhã rompeu carregada
de nuvens negras, prenúncio dos dias cinzentos e tristes que esperavam a comunidade.
Começaram a cair alguns flocos brancos no preciso instante em que oito monges removiam
o corpo do abade do edifício da enfermaria. Atravessaram o pátio principal e entraram
pelo corredor do claustro que dava acesso ao templo. Entraram na igreja e dirigiram-se,
solenes, ao túmulo, que já estava instalado diante do altar e sobre o qual
depositaram o cadáver. Tinham sido acendidas centenas de velas a todo o comprimento
do coro e em torno do presbitério. Os monges posicionaram-se diante das suas misericórdias
e foi dado início aos cânticos dos salmos funerários, dirigidos pelo sacristão.
Tinha passado meio dia e o eco da
morte já tinha chegado a todos os arredores, levado pelo rebate do sino. Durante
todo o dia, homens, mulheres e crianças foram-se dirigindo ao templo para
prestarem as suas homenagens particulares ao falecido abade. Ubertino tinha ficado
sentado na primeira fila, junto ao túmulo, de onde podia observar o perfil pétreo
e solene do cadáver. Entretanto, chegou uma freira idosa ao templo. Os seus olhos,
claros como a água e tragados pelas maçãs salientes do rosto no vazio das órbitas
oculares, observaram prudentemente o interior por um breve instante. Cobria o
corpo diminuto com o hábito branco da ordem beneditina e tinha o rosto
delimitado pela touca, que lhe apertava as feições envelhecidas. Havia poucos meses
que tinha entrado naquela igreja. Olhou, receosa, para um lado e para o outro e,
com o requiem de fundo entoado pelos
monges, aproximou-se, prudente, do estrado sobre o qual jazia o corpo do abade.
Ubertino fixou o olhar nela assim que a viu. Os olhos de ambos encontraram-se por
um instante e o monge estremeceu perante aquele olhar. Ajustou a sua túnica de frade
ao pescoço, pensando que os tremores se deviam ao frio que invadira o templo.
A mulher deteve-se diante de quem
jazia, como se se tratasse de um Cristo dolente ali colocado para que o venerasse.
Uma lágrima quase impercetível resvalou-lhe pela face. Pegou na mão inerte do abade.
Ubertino levantou-se, alarmado, mas não saiu de onde se encontrava, como se tivesse
ficado petrificado por uma espécie de força interior que o impedisse de interromper
aquele momento entre os dois. A mulher olhou-o de soslaio e esboçou um sorriso
melancólico. Depois, deu meia-volta e afastou-se. Ubertino tornou a sentar-se,
desconcertado, vendo a idosa encaminhar-se para a porta com passos curtos e lentos,
encurvada e pesarosa, até que acabou por a perder de vista. Olhou para o cadáver
e perguntou-se quem poderia ser aquela mulher. Um estranho impulso fê-lo desejar
sair dali a correr para lhe perguntar quem era, pois era evidente que conhecia
o abade, mas a cerimónia fúnebre iniciava-se naquele instante e foi obrigado a manter-se
no seu lugar. Nunca mais voltou a vê-la.
O enterro
foi silencioso e rápido. Cumprindo a sua vontade expressa, a terra cobriu o corpo
do defunto, que ia envolto numa manta de lã simples. Não quisera caixões nem madeiras
que o isolassem da terra em que devia repousar. Sobre a tumba, foi colocada apenas
uma simples cruz feita com dois paus de madeira de cedro, atados com uma corda.
Depois, cada um dos monges afastou-se, pesaroso, para se dedicar aos seus
afazeres habituais, interrompidos havia dias pela morte. A calma e o sossego pareceram
regressar com o retomar implacável da vida pelos vivos e o inevitável abandono do
defunto à solidão da morte». In Paloma Shanchez-Garnica, A Brisa do
Oriente, 2009, tradução de Luís Coputinho, Saída de Emergência, 2012, ISBN
978-989-637-411-2.
Cortesia
SEmergência/JDACT