Os
novos reis. O casamento de Janeiro
«(…) O arcebispo tomou, de uma bandeja
estendida por um segundo prelado, o anel de ouro incrustado de rubis que acabava
de benzer e entregou-o ao rei. O anel estava molhado, como tudo aquilo em que
alguém tocava no meio da bruma. Em seguida, docemente, o arcebispo aproximou as
mãos dos esposos. Em nome do Pai, pronunciou Eduardo, pondo o anel, sem o enfiar,
sobre a extremidade do polegar de Filipa. Em nome do Filho e do Espírito
Santo..., disse, repetindo o gesto sobre o indicador e depois sobre o médio. Por
fim fez deslizar o anel pelo dedo anular e acrescentou: Ámen! Filipa era sua mulher.
Como qualquer mulher que casa o filho, Isabel tinha lágrimas nos olhos. Esforçava-se
por pedir a Deus que concedesse felicidade a seu filho, mas era sobretudo em si
mesma que pensava, e sofria. Os últimos dias haviam preparado aquele momento, em
que deixara de ser a primeira no coração do filho e da sua casa. Não que tivesse,
nem quanto à autoridade na corte nem quanto à beleza, o que quer que fosse a
recear da comparação com a pequena pirâmide de veludo e de rendas que o destino
lhe reservara para nora.
Direita, esbelta e loura, com as belas
tranças douradas enroladas dos dois lados do rosto, aos trinta e seis anos Isabel
não parecia ter mais de trinta. O espelho longamente consultado nessa mesma
manhã, quando punha a coroa para assistir à cerimónia, tranquilizara-a.
Contudo, nesse mesmo dia deixara de ser apenas a rainha para passar a ser a rainha-mãe.
Como pudera tudo aquilo acontecer tão depressa? Como tinham desaparecido vinte anos
da sua vida, atravessados por tantas tempestades, daquela maneira, sem que desse
por isso? Lembrava-se do seu próprio casamento, há precisamente vinte anos, num
fim de Janeiro como aquele, também enevoado, em Boulogne, França. Também ela casara
acreditando na felicidade, e pronunciara os seus votos acreditando no que dizia
do fundo do coração. Mas não fazia ideia de quem desposara para satisfazer os
interesses dos dois reinos. Não fazia ideia de que, em paga do seu amor e da sua
dedicação, apenas receberia desprezo, ódio e humilhações, de que seria suplantada
no leito do marido não por mulheres, mas sim por homens oportunistas e espalhafatosos,
que o seu dote seria pilhado e que teria de fugir para o exílio a fim de salvar
a sua vida ameaçada e reunir um exército para abater o homem que fizera
deslizar pelo seu dedo a aliança nupcial.
A jovem Filipa tinha sem dúvida mais
sorte: além de desposada era amada. Só os primeiros casamentos podem ser plenamente
puros e felizes. Quando não o são, não há nada que possa substituí-los. Os
amores que se seguem nunca alcançam a mesma perfeição e brilho. Mesmo quando parecem
sólidos como rochas, corre no seu mármore sangue de uma outra cor, que é como o
sangue seco do passado. A rainha Isabel voltou-se para Rogério Mortimer, barão
de Wigmore, seu amante e o homem que, tanto graças a ela como a ele próprio, mandava
como senhor em Inglaterra em nome do jovem rei. De sobrancelhas unidas, traços
severos e braços cruzados sobre o manto sumptuoso, olhava-a nesse preciso momento,
com um olhar sem bondade. Adivinhou o que
estou a pensar, disse a rainha para consigo. Como é possível que me faça recear
cometer um pecado apenas por não pensar nele por um segundo?
Isabel
conhecia o carácter sombrio do amante, e sorriu-lhe para o apaziguar. Que
queria ele além do que já tinha! Viviam como marido e mulher, embora ela fosse rainha
e ele casado, e todo o reino estava a par dos seus amores. Ela própria manobrara
de maneira que ele tivesse o domínio total do poder no reino. Mortimer nomeava os
seus amigos para rodos os lugares, apoderara-se de todos os domínios dos antigos
favoritos de Eduardo II e o Conselho para pouco mais servia que para validar os
seus desejos. Mortimer conseguira mesmo que ela consentisse na execução do seu marido,
caído em desgraça. Sabia além disso que por causa dele começava a ser conhecida
como a Loba de França. Seria possível que chegasse ao ponto de querer impedi-la
de pensar, num dia de casamento, no seu marido assassinado, especialmente quando
o seu executor estava ali presente, na pessoa de João Maltravers, promovido pouco
antes a senescal de Inglaterra? O seu rosto longo e sinistro estava entre os
dos grandes senhores, como para recordar o seu crime». In Maurice Druon, 1966, Os Reis
Inimigos, A Flor-de-Lis e o Leão, tradução de Helena Ramos, Círculo de Leitores,
2007, ISBN 978-972-42-3926-2.
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