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Mas no Inverno ficavam superpovoados por aqueles que não conseguiam arranjar
algo melhor para viver. Era aí que Sheila vivia com o pai. Toxicómano e com
problemas de alcoolismo, o pai de Sheila vivera na prisão a maior parte da
curta vida da menina. Não tinha emprego. Estando naquela altura em liberdade
condicional, seguia um programa de reabilitação contra excesso de álcool e
pouco mais fazia. A mãe de Sheila tinha apenas catorze anos de idade quando,
após ter fugido de casa, conheceu o pai de Sheila e engravidou. A criança nascera
dois dias antes de a mãe completar quinze anos. Dezanove meses depois, dava à luz
o segundo filho, um rapaz. A ficha não continha muito mais informações acerca
da mãe, mas não era difícil ler nas entrelinhas uma história de drogas, álcool
e violência doméstica.
Por qualquer razão, deve ter
ficado farta, já que abandonou a família quando Sheila tinha quatro anos de
idade. Segundo o breve relatório, aparentemente, tencionara levar com ela os
dois filhos, mas Sheila foi posteriormente encontrada abandonada num troço de
auto-estrada, cerca de cinquenta quilómetros a sul da cidade. Da mãe de Sheila
e do seu irmão Jimmie nunca mais se ouviu falar. A maior parte do dossiê relatava
em pormenor o comportamento de Sheila. Em casa, o pai parecia não ter qualquer
controlo sobre ela. Por diversas vezes , fora encontrada a deambular pelo
recinto do campo a altas horas da noite. Já tinha um cadastro por fogos postos
e, por três ocasiões, fora indiciada pela polícia por atitudes criminosas, o
que constituía um feito para uma criança de seis anos de idade. Na escola, Sheila
recusava-se frequentemente a falar e, por conseguinte, a ficha não continha qualquer
informação sobre o que pudesse ter aprendido.
Frequentara o infantário e o primeiro
ano da escola primária que ficava perto do campo de imigrantes, até se dar o incidente
com o rapazinho, mas não havia relatórios de avaliação. Em vez dos habituais resultados
dos testes e dos relatórios da aprendizagem, havia um rol de episódios de
terror que descreviam ao pormenor o comportamento destrutivo e frequentemente violento
de Sheila. No final da ficha havia um breve relatório do incidente com o rapazinho.
O juiz concluiu que Sheila estava fora do controlo dos pais e que o mais aconselhável
seria colocá-la numa unidade segura que melhor satisfizesse as suas
necessidades. Neste caso, referia-se à unidade de cuidados infantis do hospital
psiquiátrico estadual. Infelizmente, este encontrava-se cheio aquando da
audiência, e Sheila teria de aguardar por uma vaga. Posteriormente, fora apensa
ao relatório uma anotação que salientava a necessidade de lhe ser proporcionado
algum tipo de educação, em virtude da sua idade e dos requisitos legais, mas ninguém
se incomodara a propor uma solução.
Estava sob rigorosa vigilância, o
que significava que teria de ser provisoriamente mantida na escola, dada a especificidade
da lei; mas não tinha de me sentir obrigada a ensiná-la. Com a chegada de
Sheila, a minha sala de aula transformou-se num redil. Naquela fase da minha carreira,
a juventude era o meu dom mais valioso. Inflamada de idealismo, tinha a forte convicção
de que não havia crianças problemáticas, mas tão-só uma sociedade problemática.
A minha relutância inicial em aceitar Sheila devera-se ao facto de ter a sala repleta
e os recursos esgotados; nada tinha que ver com a criança propriamente dita. Assim,
uma vez que fiquei com ela, considerei-a como minha; e a minha aula não era um
redil! Tinha uma firme convicção na integridade humana e que esta era um direito
inalienável de cada uma das minhas crianças.
Bem,
quase. Logo à partida, Sheila provocara um forte abalo nas minhas convicções, e
começara nesse mesmo dia. À hora do almoço, enquanto estava reunida com Anton no
gabinete principal, examinando a ficha de Sheila, ela semeava o pânico na nossa
sala de aula, entretendo-se a retirar os peixes dourados do aquário e a extrair-lhes
os olhos. Sheila era a prova de que o caos viera para se instalar, vestido com jardineiras
de ganga e uma T-shirt desbotada. Falava
sempre com uma voz esganiçada. Tudo em que tocava ficava quebrado, amolgado, esmagado
ou desfigurado. E toda a gente, incluindo eu, era vista como O Inimigo. Ela agia de um modo
que Anton denominou de modelo animal.
Não havia muito de modelo de criança,
nos primeiros dias. Sheila interpretava o mais ligeiro movimento inesperado como
um ataque. Os olhos ficavam sombrios, o rosto corava, o corpo ganhava uma rigidez
de alerta e, a partir daquele momento, a questão a ponderar era se ela iria lutar,
entrar em pânico ou fugir. Quando estava sintonizada no modelo animal, os nossos métodos aproximavam-se muito mais da domesticação
do que do ensino. Ainda assim... Sheila era diferente. Havia algo de eléctrico nela,
nos seus olhos, na precisão dos seus movimentos, que se impunha a tudo, mesmo nos
seus momentos mais agitados. Eu não conseguia distinguir o que era, mas
pressentia-o». In Torey Hayden, 1995, A Menina que Nunca Chorava, tradução de Fernando
Antunes, Editorial Presença, 2007, 2012, Lisboa, ISBN 978-972-233-804-2.
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