O que é a Saudade, linguisticamente
«(…) No primeiro trecho, saudade
é positivamente emenda de saúde, segundo
a reprodução sau[da]de do próprio
Klob. E saúde dava sentido nela. Mas
não o dá no segundo passo, onde Klob imprime saudade, como se realmente assim estivesse no original. Nele
só serve saudade-tristeza. E não saudade-salvação de saude nem salutate. Seja
como for, certo é que saudade de soidade ou suidade não é evolução fónica. O
ditongo oi, como equivalente de ou, e representante de au
originário, é normal. Coisa cousa provêm de causa; oiro ouro de auru; loiro
louro de lauru., etc. Anormal é o oposto: au de oi. De mais a mais, num período
em que todos pronunciavam ainda so-i-dade.
Temos de recorrer, repito-o à analogia, à associação de ideias, ou à
etimologia popular, isto é a processos psicológicos, para encontrarmos a chave
do enigma e explicar a substituição esporádica de o-i por au, que, aumentando a
sonoridade melancólica do vocábulo, aumentou ao mesmo tempo sua significação: o
conteúdo, o espírito, a alma. O influxo que houve, pode ou deve provir de
palavras que principiavam com saud...
Distingo dois grupos, diversos, conquanto aparentados. Primeiro, o verbo
saudar de salutare com o substantivo saude- salute, populares e muito usados.
Segundo: o sustantivo culto, mas bíblico, e por isso até certo ponto
popularizado que acabo de citar: saudade
de saludade o qual
significava salvação (heil), e substituía às vezes (em Espanha) o adj.
lat. salutaris (heilsan). Na boca do vulgo saludade devia forçosamente
passar a saudade.
Já outros autores supuseram influxo de saude em saudade. Mas não
disseram como se realizaria o fenómeno, surpreendente realmente, visto que
entre salus salutatis e seus
derivados, e a doentia soidade, e
mais derivados de solus há um abismo,
que nem mesmo com ajuda de saludad na
acepção de salvação se transpõe a contento. Eis o que penso e como combino suidade com saúde e com saludade, e solus com salutaris. Ainda nos nossos dias, no século XX, os populares, e não
só eles, principiam as suas produções epistolográficas, tão curiosas e instrutivas,
desejando saúde a quem está longe, em terras estranhas, ou pelo menos
afastado deles corporal ou espiritualmente. E fecham-nas saudando esse
ente, ou enviando-lhe saudações mil, assim como aos demais parentes,
amigos, conhecidos que por acaso estejam na companhia dele. Estimo que ao
receberes esta (ou: desta) estejas de perfeita, em companhia de quem mais
desejas, pois a minha, ao fazer desta é boa, graças a Deus. Em primeiro
lugar o que desejo a V. Ex.ª é saúde e mil felicidades.
Nas fórmulas finais as saudações obrigatórias são hoje substituídas em
regra por visitas e recomendações, banais (o bien des choses dos franceses). Continua contudo a haver quem
mande muitas saudades, pois as minhas só ao ver-te é que terão fim. Claro que
outrora, nos tempos de Ceuta, Arzila, Safim, Mazagão, da Índia, e do Brasil,
muitos diriam suidades, e essas seriam
realmente sentidas e significativas. Não sempre, porque a natureza humana é má
desde Adão e Eva. Não tenho presente exemplo algum em que, a par de Suidades se
enviassem também desejos de salvação, sinceramente religiosa, não
faltaria quem assim procedesse, empregando saudade
no sentido de salvação. Pelo contrário, disponho de diversas cartas em que saúde e saudade andam de mãos dadas». In Carolina Michaelis de Vasconcelos,
A Saudade Portuguesa, Colecção Filosofia & Ensaios, Guimarães Editores,
Lisboa, 1996, ISBN 972-665-397-5.
Cortesia de GuimarãesE./JDACT