terça-feira, 1 de setembro de 2015

A Saudade Portuguesa. Carolina Michaelis Vasconcelos. «Já outros autores supuseram influxo de saude em saudade. Mas não disseram como se realizaria o fenómeno, surpreendente realmente, visto que entre ‘salus salutatis’ e seus derivados, e a doentia ‘soidade’»

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O que é a Saudade, linguisticamente
«(…) No primeiro trecho, saudade é positivamente emenda de saúde, segundo a reprodução sau[da]de do próprio Klob. E saúde dava sentido nela. Mas não o dá no segundo passo, onde Klob imprime saudade, como se realmente assim estivesse no original. Nele só serve saudade-tristeza. E não saudade-salvação de saude nem salutate. Seja como for, certo é que saudade de soidade ou suidade não é evolução fónica. O ditongo oi, como equivalente de ou, e representante de au originário, é normal. Coisa cousa provêm de causa; oiro ouro de auru; loiro louro de lauru., etc. Anormal é o oposto: au de oi. De mais a mais, num período em que todos pronunciavam ainda so-i-dade.
Temos de recorrer, repito-o à analogia, à associação de ideias, ou à etimologia popular, isto é a processos psicológicos, para encontrarmos a chave do enigma e explicar a substituição esporádica de o-i por au, que, aumentando a sonoridade melancólica do vocábulo, aumentou ao mesmo tempo sua significação: o conteúdo, o espírito, a alma. O influxo que houve, pode ou deve provir de palavras que principiavam com saud... Distingo dois grupos, diversos, conquanto aparentados. Primeiro, o verbo saudar de salutare com o substantivo saude- salute, populares e muito usados. Segundo: o sustantivo culto, mas bíblico, e por isso até certo ponto popularizado que acabo de citar: saudade de saludade o qual significava salvação (heil), e substituía às vezes (em Espanha) o adj. lat. salutaris (heilsan). Na boca do vulgo saludade devia forçosamente passar a saudade.
Já outros autores supuseram influxo de saude em saudade. Mas não disseram como se realizaria o fenómeno, surpreendente realmente, visto que entre salus salutatis e seus derivados, e a doentia soidade, e mais derivados de solus há um abismo, que nem mesmo com ajuda de saludad na acepção de salvação se transpõe a contento. Eis o que penso e como combino suidade com saúde e com saludade, e solus com salutaris. Ainda nos nossos dias, no século XX, os populares, e não só eles, principiam as suas produções epistolográficas, tão curiosas e instrutivas, desejando saúde a quem está longe, em terras estranhas, ou pelo menos afastado deles corporal ou espiritualmente. E fecham-nas saudando esse ente, ou enviando-lhe saudações mil, assim como aos demais parentes, amigos, conhecidos que por acaso estejam na companhia dele. Estimo que ao receberes esta (ou: desta) estejas de perfeita, em companhia de quem mais desejas, pois a minha, ao fazer desta é boa, graças a Deus. Em primeiro lugar o que desejo a V. Ex.ª é saúde e mil felicidades.
Nas fórmulas finais as saudações obrigatórias são hoje substituídas em regra por visitas e recomendações, banais (o bien des choses dos franceses). Continua contudo a haver quem mande muitas saudades, pois as minhas só ao ver-te é que terão fim. Claro que outrora, nos tempos de Ceuta, Arzila, Safim, Mazagão, da Índia, e do Brasil, muitos diriam suidades, e essas seriam realmente sentidas e significativas. Não sempre, porque a natureza humana é má desde Adão e Eva. Não tenho presente exemplo algum em que, a par de Suidades se enviassem também desejos de salvação, sinceramente religiosa, não faltaria quem assim procedesse, empregando saudade no sentido de salvação. Pelo contrário, disponho de diversas cartas em que saúde e saudade andam de mãos dadas». In Carolina Michaelis de Vasconcelos, A Saudade Portuguesa, Colecção Filosofia & Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1996, ISBN 972-665-397-5.

Cortesia de GuimarãesE./JDACT