segunda-feira, 28 de setembro de 2015

A Solidão dos Números Primos. Paolo Giordano. « Leva-os com as pontas para a frente, senão ainda matas alguém, disse-lhe o pai. No fim da temporada o Clube de Esqui oferecia-te um crachá com estrelinhas em relevo. Cada ano uma estrelinha a mais…»

jdact

O Anjo da Neve
«Alice Della Rocca odiava a escola de esqui. Odiava despertar às sete e meia da manhã também nas férias de Natal e odiava o pai que a fitava ao pequeno-almoço enquanto por baixo da mesa fazia dançar a perna nervosamente, como que a dizer despacha-te. Odiava as meias-calças de lã que lhe picavam as pernas, as luvas que não lhe deixavam mexer os dedos, o capacete que lhe esmagava as faces e premia com o ferro no queixo e, depois, aquelas botas, sempre demasiado apertadas, que a faziam caminhar como um gorila. Então, bebes o leite ou não? insistiu, de novo, o pai. Alice emborcou três dedos de leite a ferver, que lhe queimou primeiro a língua, depois o esófago e o estômago. Muito bem. Hoje vais mostrar quem és, disse-lhe. E eu sou quem, pensou ela. Depois, empurrou-a para a rua, mumificada no fato verde de esqui pejado dos emblemas e adereços fluorescentes dos patrocinadores. Àquela hora a temperatura rondava os 10º negativos e o sol era apenas um disco um pouco mais cinzento que o nevoeiro envolvente. Alice sentia o leite a revirar-lhe o estômago enquanto mergulhava na neve de esquis ao ombro, pois os esquis é preciso carregá-los sozinha, até que não sejas de tal maneira boa que alguém os carregue por ti.
Leva-os com as pontas para a frente, senão ainda matas alguém, disse-lhe o pai. No fim da temporada o Clube de Esqui oferecia-te um crachá com estrelinhas em relevo. Cada ano uma estrelinha a mais, desde que tinhas quatro anos e eras suficientemente alta para enfiar entre as pernas a cadeirinha do skilift até quando fazias nove e a cadeirinha já a conseguias agarrar sozinha. Três estrelas de prata e, depois, mais três de ouro. Cada ano um crachá para te dizer que estavas um pouco mais preparada, que estavas um pouco mais próxima das competições que tanto aterrorizavam Alice. Já na altura pensava nas competições e ainda só tinha três estrelas.
O local de encontro era junto ao teleférico às oito e meia em ponto, para a abertura da estância de esqui. Os colegas de Alice já lá estavam, formando uma espécie de círcu1o, todos iguais como soldadinhos, atabafados no uniforme e entorpecidos pelo sono e pelo frio. Espetavam os bastões na neve e apoiavam-se neles, ancorando-se nas axilas. De braços pendurados pareciam inúmeros espantalhos. Ninguém tinha vontade de falar e Alice muito menos. O pai deu-lhe duas palmadas demasiado fortes no capacete, quase parecia querer espetá-la na neve. Dá cabo deles. E lembra-te: o peso para a frente, percebes? Pe-so-pa-ra-a-fren-te, disse-lhe. O peso para a frente, respondeu o eco na cabeça de Alice. Depois, ele afastou-se, soprando para dentro dos punhos cerrados, ele que rapidamente voltaria para o quentinho da casa para ler o jornal. Dois passos e o nevoeiro engoliu-o. Alice deixou cair os esquis no chão de um modo que se o seu pai a tivesse visto certamente lhas daria ali mesmo, à frente de todos. Antes de enfiar as botas nos esquis, bateu-lhes na sola com o bastão para sacudir os pedaços de neve encrostados.
Estava um pouco aflita. Sentia o chichi a empurrar a bexiga, como um alfinete espetado dentro da barriga. Também hoje não iria aguentar, tinha a certeza. Todas as manhãs a mesma coisa. Depois do pequeno almoço fechava-se na casa de banho e fazia força, fazia força, para esvaziar o chichi todo. Deixava-se ficar na sanita a contrair os abdominais até sentir, devido ao esforço, uma pontada na cabeça e ter a impressão de que os olhos se lhe escapuliam das órbitas, como a polpa da uva morangueira se apertares a casca. Abria ao máximo a torneira da água para que o pai não ouvisse os barulhos. Empurrava cerrando os punhos, para espremer até à última gota». In Paolo Giordano, A Solidão dos Números Primos, 2008, tradução de José Serra, Bertrand Editora, Lisboa, 2013, ISBN 978-972-251-834-5.

Cortesia de BertrandE/JDACT