O Suão
«Em tarde quente, de Agosto,
do sol na agonia flava,
soprou, de súbito, um
vento
soturno, que amolentava.
O Serafim, conversando
no cruzeiro co’a
comadre.
Clama: cá temos o suão,
que queima a vinha do padre!
Que é isso?, pregunta a
velha,
que foi bem bonita em
moça;
volve logo o Serafim:
Não sabe? Pois então
ouça!
E assentado num degrau
da cruz doirada p’lo
ocaso,
limpando o suor com o
lenço,
contou o seguinte caso.
Damião das Casas-Novas,
sem ter altar, era um
santo;
era no dar um
mãos-rôtas.
ninguém dava mais, nem
tanto!
Adivinhava as misérias,
para logo as socorrer;
e, para amparar
famílias,
nunca família quis ter.
Rotinho, vestia os
outros
com mão de pai, muito
amiga…
Certa manhã, na
Quaresma,
lá vai ele à desobriga.
Velhinho, na sacristia,
dobra os joelhos
emperrados…
Rebusna o padre, e enfim
clama
diga lá os seus pecados!
Damião busca e rebusca,
mas nada tem que dizer…
Grita o prior: desembuche,
que eu tenho mais que
fazer!
Mas Damião nada diz…
Que há-de dizer? Só faz
bem…
Porém, o padre é
frenético,
e afinal não se contém.
Veja lá! Grande ou
pequena,
na alma há sempre uma
chaga!
Não pecou por
pensamentos?
Não rogou alguma praga?
Roguei! Roguei!, diz,
submisso
e a soluçar, Damião
roguei uma praga foi,
p’lo que peço a Deus
perdão!
Do prior a voz espessa
então, colérica, troa
praguejar é grave falta,
que o próprio Deus mal
perdoa!
A praga é uma bofetada
que se dá na Caridade!
Quem o mal deseja aos
outros
acha o mal na
Eternidade.
Ouça bem o que lhe digo
nesta cadeira onde estou!
E contra quem foi,
confesse,
que essa tal praga rogou?
Arrependido, a tremer,
o pobre do Damião
responde com voz humilde
foi contra o vento suão!
Foi contra o vento suão?
Diz o prior admirado.
Andou você muito bem!
Isso é um vento
estuporado!
Esse vento merecia
rodado ser por mil
rodas!
Há-de haver uns oito meses,
Queimou-me as videiras todas!
De contrição diga o
acto,
vou dar-lhe a absolvição…
Raios partam esse vento!
Leve o Diabo tal suão!»
In Eugénio de Castro, Cravos de
Papel, Empresa Internacional Editora Lumen, edição com tiragem especial,
Lisboa, Porto, Coimbra, 1922.
Cortesia de Lumen/JDACT