Dona Leonor e os irmãos
«(…) O historiador nem sequer
pode garantir que dona Leonor tivesse convivido da mesma maneira com todos os
seus irmãos durante a infância. Sabemos, por indicadores indirectos, no
entanto, que esteve muito ligada aos três irmãos que sobreviveram. De Diogo,
arrancado da sua companhia quando andaria pelos 20 anos e ela 26, sabemos que a
sua morte lhe causou um desgosto violento, embora dele tenhamos um único
testemunho. Mas, na idade adulta, dona Leonor conviveu prolongadamente com os
dois irmãos que lhe restavam. A irmã Isabel acompanhá-la-ia toda a vida, tendo
casado com o único homem cuja posição na graduatória do poder estava acima do
pai de ambas. Tratava-se de Fernando, duque de Guimarães, herdeiro do título de
duque de Bragança, e que viria a morrer anos depois, em 1483, acusado de conspirar contra o primo João II. No entanto, por
todo o século XVI, episódio da extinção da sua casa à parte, seriam os duques
de Bragança distinguidos do ponto de vista protocolar com a posição imediata a
seguir ao rei. Seria, de resto, terminada a União Dinástica, a casa
senhorial de onde sairia o rei da nova dinastia dos Bragança, João IV aclamado
em 1640.
Isabel morreria em Abril de 1521, e o outro irmão de dona Leonor, o
rei Manuel I, em Dezembro do mesmo ano. Dona Isabel foi sepultada ao lado de
dona Leonor, numa demonstração clara da relação que mantiveram em vida,
consubstanciada na ligação ao Convento da Madre de Deus de Xabregas. Dos outros
irmãos de dona Leonor, quatro morreriam crianças e praticamente não aparecem nas
fontes: Catarina, Duarte, Dinis e Simão. Apenas há indícios de que
Duarte viveu até aos 10 anos de idade, tal como o filho varão mais velho, que,
por herdar a casa e o título do pai, aparece mais vezes. Note-se que, mesmo que
dona Leonor fosse mais velha do que os irmãos, estava fora de questão suceder
fosse no que fosse em havendo herdeiros masculinos. Apenas no caso de estes
desaparecerem podia o rei criar uma situação de excepção, autorizando-a a
suceder. João morreria sem casar sucedendo
no estado de seu pai, com pouca idade, cerca de 10 anos. No seguimento da
morte do pai, a mãe tomou posse da ilha da Madeira em seu nome, em Outubro de 1470. Em Janeiro de 1473, no entanto, já Diogo, o irmão a
seguir, lhe herdava o património, com excepção do mestrado da Ordem de
Santiago, que com prazer e consentimento
da dita infante [D. Beatriz] foi dado ao príncipe. Chegou este irmão à
idade adulta, embora não tivesse vivido além dos 20 anos, idade em que foi
morro pelo próprio rei, acusado de traição. Quanto ao irmão mais novo, Manuel, rei felicíssimo que foi destes reinos,
viveria até aos 52 anos de idade, tendo morrido em 1521 após vinte e seis anos de reinado. Para a nossa história, contam
portanto os filhos sobreviventes: Leonor, Isabel, duquesa de Bragança, e
Manuel, que foi rei de Portugal. Diogo fará apenas uma breve aparição nesta
biografia, em que morrerá apunhalado pelo cunhado. Deste trio que viveu até aos
anos 20 do século XVI, Leonor, Isabel e Manuel, ficar-nos-á, no entanto,
uma impressão de proximidade afectiva e de intimidade familiar.
Criação e educação de dona Leonor
Aproveito também para explicar,
em jeito de nora, que tenho estado a usar termos de parentesco habituais nos
nossos dias, mas que as pessoas desta época não conheciam. Palavras como sogro,
sogra, nora, genro, cunhado, cunhada, entre
outros, não constam na documentação. Em vez delas, usam-se pai, mãe, filho,
filha, irmão e irmã. Ou seja, o casamento criava um prolongamento daquilo
que hoje entendemos por família biológica (ou pelo menos imediata) no sentido
estrito. Existiam no entanto os termos primo/a, tio/a com o mesmo
sentido que têm actualmente. E, ainda, uma palavra especial para significar
parentesco: o devido, que em muitos
casos indica mesmo a existência de uma dívida, ou seja, de obrigações para com
os parentes. Falava-se justamente em maior
devido, para explicar que, devido à proximidade de parentesco, os deveres
recíprocos aumentavam. É este portanto o quadro em que nos movemos: por uma
questão prática usarei as actuais designações de parentesco, não sem ter
explicado que tinham valências diferentes para a época a que nos reportamos.
Não sabemos que tipo de educação dona
Beatriz deu aos filhos, nem como os criou. É pouco provável que tivesse amamentado
qualquer um deles, porque o costume mandava dar os filhos a uma ama. Dona Leonor
teve a sua ama, porque o sistema de reprodução nas casas nobiliárquicas assim o
obrigava: as mulheres tinham uma sucessão de partos, sendo necessário evitar os
períodos de infertilidade propiciados pela amamentação. O seu sucesso enquanto
esposas media-se pela capacidade de dar à luz, e não havia limites para o
número de filhos a gerar. Afinal, era o próprio tempo a recolocar as coisas no
seu lugar: muitas das crianças acabavam por morrer. Entre os reis portugueses,
pode comparar-se o rei Manuel I com João III: o primeiro teve treze filhos,
dos quais nove chegaram à idade adulta e o segundo, dez, mas nenhum
ultrapassou a idade de 20 anos. A sua última biógrafa falou precisamente em estrelas funestas, para designar a
sucessão de mortes ocorrida entre os filhos de João III. Alguns historiadores falam
em lotaria demográfica para designar a imprevisibilidade do número de filhos
sobreviventes num determinado casal, bem como o eventual desequilíbrio entre o
número de filhos e filhas». In Isabel Guimarães Sá, De Princesa a
Rainha-velha, Leonor de Lencastre, colecção Rainhas de Portugal, Círculo de
Leitores, 2011, ISBN 978-972-424-709-0.
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