«O presente texto foi escrito entre Maio
de 1996 e Maio de 1997. O primeiro capítulo foi publicado no suplemento juvenil
do Diário de Notícias, DN Jovem, a 7 de Maio de 1996. Na sequência de um
prémio atribuído pelo Instituto Português da Juventude e do Clube Português de
Artes e Ideias, o texto integral foi incluído na Colectânea de Textos Jovens
Criadores 98».
«Regressei
hoje a esta terra agora cruel. A nossa terra, pai. E tudo como se continuasse.
Diante de mim, as ruas varridas, o sol enegrecido de luz a limpar as casas, a
branquear a cal; e o tempo entristecido, o tempo parado, o tempo entristecido e
muito mais triste do que quando os teus olhos, claros de névoa e maresia distante
fresca, engoliam esta luz agora cruel, quando os teus olhos falavam alto e o
mundo não queria ser mais que existir. E, no entanto, tudo como se continuasse.
O silêncio fluvial, a vida cruel por ser vida. Como no hospital. Dizia nunca
esquecerei, e hoje lembro-me. Rostos tornados desconhecidos, desfigurados na
minha certeza de perder-te, no meu desespero, desespero. Como no hospital. Não
acredito que possas ter esquecido. Enquanto esperava pela minha mãe e pela
minha irmã, as pessoas passavam por mim como se a dor que me enchia não fosse
oceânica e não as abarcasse também. As mulheres falavam, os homens fumavam
cigarros. Como eu, esperavam; não a morte, que nós, seres incautos,
fechamos-lhe sempre os olhos na esperança pálida de que, se não a virmos, ela
não nos verá. Esperavam. Num carro demasiado rápido, a minha mãe, curvada de
perder o que possuía, e a minha irmã. Os homens e as mulheres falavam e fumavam
ainda quando subimos. No quarto, numa cama qualquer que não a tua, o teu corpo,
pai. Talvez distante, preso num olhar entreaberto e amarelado, respiravas
ofegante. O ar com que lutavas, lutavas sempre, gritava o seu caminho rouco.
Pelo nariz, entrava o tubo que te sustinha. Aos pés da cama, a minha mãe
calada, viúva de tudo. À cabeceira, a minha irmã, eu. Cortinas de plástico,
biombos de banheira separavam-nos das outras camas. Pousei-te as mãos nos
ombros fracos. Toda a força te esmorecera nos braços, na pele ainda pele viva.
E menti-te. Disse aquilo em que não acreditava. Ao olhar amarelo, ofegante, disse
que tudo serias e seríamos de novo. E menti-te. Disse vamos voltar para casa,
pai; vamos que eu guio a carrinha, pai; só enquanto não puder, pai; vá, agora
está fraco mas depois, pai, depois, pai. Menti-te. E tu, sincero, a dizeres
apenas um olhar suplicante, um olhar para eu nunca mais esquecer. Pai. À hora,
mandaram-nos sair. Quando saímos, agarrados como náufragos, a luz abundante
bebia-nos.
E
esta tarde, e esta terra agora cruel. Na nossa rua, a nossa casa. A porta do
quintal parada à minha frente, fechada, desafiante. Dizia nunca esquecerei, e
esta tarde lembrei-me. Com os teus movimentos, tirei do bolso o teu molho de
chaves e, como costumavas, usei todos os cuidados para escolher a chave certa,
examinando cada uma, orgulhando-me de cada uma. E, na fechadura, o triunfo. As
coisas a acontecerem devidamente. A ferrugem, as dobradiças soltaram um grito
como um suspiro ou um estertor. O alumínio rente ao mármore arrastou, varreu
uma figura certa e branca no cobertor grosso de folhas de pessegueiro. Abandonado
sobre o tamanho grande de um inverno, o quintal de quando eu era pequeno, o
quintal que construíste, pai. Tristes tristes flores novas e folhas novas nos
ramos das árvores, canteiros pintados de malvas, trevos, ervas verdes, verdes
de quando eu era pequeno e tu chegavas e me ensinavas trabalhos de grande.
Orienta-te, rapaz. Eu oriento-me, pai. Não se preocupe. Eu também sei, eu
também consigo. Eu oriento-me, pai, não se rale. O trabalho não me mete medo.
Esteja descansado, pai. Flores novas e folhas novas nos ramos das árvores,
canteiros pintados de malvas, trevos, ervas verdes, verdes desta primavera
triste triste.
Entrei
em casa. Apenas a lareira fria, as janelas fechadas a moldarem sombras finas no
escuro. Do silêncio, da penumbra, um crescer de espectros, memórias?, não,
vultos que se recusavam a ser memórias, ou talvez uma mistura de carne e luz ou
sombra. E vi-te pensei-te lembrei-te, à mesa, sentado no teu lugar. Ainda
sentado no teu lugar, e eu, a minha mãe, a minha irmã, sentados também, a rodearmos-te.
Iguais ao que éramos. Ali estávamos há muito tempo, esquecidos abandonados
desde um dia em que o passar das coisas parou na nossa felicidade simples
singela. Como uma alegria, como se tivéssemos jantado ou esperássemos jantar ou
o melhor banquete, estávamos. Felizes. Nada me era dito, mas eu, olhando, sabia
tudo, como se fosse óbvio, como se não pudesse ser de outra maneira. Tu, de
certeza, tinhas chegado do trabalho, e tinha sido um bom dia, e estavas
contente por isso, e as pessoas não faltavam com o pagamento e isso era bom. A
minha irmã andava no liceu, e as notas eram só satisfazes muitos e bastantes, e
ainda era esperta, e sorria por isso. Eu andava no primeiro ano da telescola, e
não pensava nas notas, e tinha jogado à bola, e tinha ganho, e se tivesse
perdido era igual». In José Luís Peixoto, Morreste-me, Temas e Debates, 2000/2001, ISBN
972-759-370-4.
Cortesia
de TDebates/JDACT