Das Experiências de Além Mundo ao Supra-real
«(…) O prefixo tal como Nerval o usa em supernaturalisme quer dizer acima
de, o que de resto coincide com o prefixo da palavra escolhida por Breton, o
que dá no primeiro caso acima do naturalismo
e no segundo acima do realismo. Entende-se
assim a escolha de O’Neill ao procurar adaptar a palavra à língua: super-realismo como aquilo que excede ou está acima do real. Posso ainda aceitar que o elemento de formação
inicial da palavra pode ser traduzida pela ideia que está num outro prefixo da língua,
supra, o que dá, e talvez melhor, que
o super-realismo é também o supra-realismo, e digo melhor já que super-realismo se pode confundir, o que desastroso seria,
por via da hipérbole, com hiper-realismo. Neste caso tenho só um realismo grande, no outro um além do realismo; a diferença é como se pode ver abissal: é afinal aquilo
que vai do mundo ao além mundo. Nada de tão estranho pois ao realismo, seja híper
ou mini, ou apenas médio, como o surrealismo. Nesta pesquisa sobre o valor da palavra
no momento da sua criação vale a pena trazer aqui um outro parágrafo do manifesto, que reputo talvez o de maior alcance
em todo o conjunto. Breton abre o texto com considerações sobre o sonho, o que se
entende dada a importância do sonho na vida geral e nos trabalhos preparatórios
a que o autor e os seus amigos se entregavam desde há anos. Demais o sonho fora
o instrumento de que Freud se servira para justificar a pressão da (anti)lógica
da segunda consciência junto da primeira. Se os conteúdos recalcados conseguiam
furar o interdito do esquecimento que a primeira consciência lhes impunha isso se
devia em primeiro lugar ao sonho. O sonho era a solução de compromisso que a primeira
e a segunda consciência estabeleciam entre si; nesse pacto, a primeira consciência
abria a porta aos conteúdos recalcados desde que estes procedessem por deslocamentos
de sentido, quer dizer, desde que recorressem a metáforas ou símbolos de disfarce para se manifestarem;
pelo seu lado a segunda consciência, para furar o bloqueio a que estava sujeita,
acedia em disfarçar os seus conteúdos, criando tramas desconexas e sem sentido,
que a primeira consciência se apressava a dar por absurdas, arrumando-as sem mais
nos escaninhos do olvido. O trabalho da análise era assim deslindar as cifras do
disfarce, peneirando os conteúdos recalcados que sob forma simbólica a primeira
consciência acedera em receber». In António Cândido Franco, Notas para a
Compreensão do Surrealismo em Portugal, Lisboa, Peniche, Évora, Editora
Licorne, 2012, ISBN 978-972-8661-90-8.
Cortesia de Licorne/JDACT