terça-feira, 15 de setembro de 2015

O Ano da Morte de Ricardo Reis. José Saramago. «Ricardo Reis almoçou sem ligar a dietas, ontem foi fraqueza sua, um homem, quando desembarca do mar oceano, é como uma criança, umas vezes procura um ombro de mulher para descansar a cabeça»

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«Trabalhar com nobreza, esperar com sinceridade, enternecer-se com o homem, esta é a verdadeira filosofia». In Fernando Pessoa

«(…) Leve-me ao Rossio, se faz favor. O motorista mastigava metodicamente um palito, passava-o de um canto da boca para o outro com a língua, tinha de ser com a língua, uma vez que as mãos estavam ocupadas na manobra, e de vez em quando aspirava ruidosamente a saliva entre os dentes, produzindo um som intermitente, dobrado como um canto de pássaro, é o chilreio da digestão, pensou Ricardo Reis, e sorriu. No mesmo instante se lhe encheram os olhos de lágrimas, estranho sucesso foi ter este efeito aquela causa, ou terá sido do enterro de anjinho que passou em sua carreta branca, um Fernando que não viveu bastante para ser poeta, um Ricardo que não será médico, nem poeta será, ou talvez que a razão deste chorar seja outra, apenas porque lhe chegou a hora. As coisas da fisiologia são complicadas, deixemo-las para quem as conheça, muito mais se ainda for preciso percorrer as veredas do sentimento que existem dentro dos sacos lacrimais, averiguar, por exemplo, que diferenças químicas haverá entre uma lágrima de tristeza e uma lágrima de alegria, decerto aquela é mais salgada, por isso nos ardem os olhos tanto. A frente, o motorista apertara o palito entre os caninos do lado direito, jogava com ele apenas no sentido vertical, em silêncio, deste modo respeitando a mágoa do passageiro, acontece-lhes muito quando voltam do cemitério. O táxi desceu a Calçada da Estrela, virou nas Cortes, em direcção ao rio, e depois, pelo caminho já conhecido, ganhou a Baixa, subiu a Rua Augusta, e, entrando no Rossio, disse Ricardo Reis, subitamente lembrado, Pare nos Irmãos Unidos, assim o restaurante se chamava, logo aí, é só encostar à direita, tem esta entrada, e outra, atrás, pela Rua dos Correeiros, aqui se restauram estômagos, e é bom sítio, de tradições, que precisamente estamos no lugar onde foi o Hospital de Todos os Santos, tempos que já lá vão, até parece que estamos a contar a história doutro país, bastou ter-se metido um terramoto pelo meio, e aí temos o resultado, quem nos viu e quem nos vê, se melhor ou pior, depende de estar vivo e ter viva a esperança.
Ricardo Reis almoçou sem ligar a dietas, ontem foi fraqueza sua, um homem, quando desembarca do mar oceano, é como uma criança, umas vezes procura um ombro de mulher para descansar a cabeça, outras manda vir na taberna copos de vinho até encontrar a felicidade, se lá a puseram antes, outras é como se não tivesse vontade própria, qualquer criado galego lhe diz o que deve comer, uma canjinha é que calhava bem ao combalido estômago de vossa excelência. Aqui ninguém quis saber se desembarcou ontem, se as comidas tropicais lhe arruinaram as digestões, que prato especial será capaz de sarar-lhe as saudades da pátria, se delas sofria, e se não sofria por que foi que voltou. Da mesa onde está, por entre os intervalos das cortinas, vê passarem lá fora os carros eléctricos, ouve-os ranger nas curvas, o tilintar das campainhas soando liquidamente na atmosfera coada de chuva, como os sinos duma catedral submersa ou as cordas de um cravo ecoando infinitamente entre as paredes de um poço. Os criados esperam com paciência que este último freguês acabe de almoçar, entrou tarde, pediu por favor que o servissem, e graças a essa prova de consideração por quem trabalha é que foi retribuído quando já na cozinha se arrumavam as panelas. Agora, sai, urbanamente deu as boas-tardes, e agradecendo saiu pela porta da Rua dos Correeiros, esta que dá para a grande babilónia de ferro e vidro que é a Praça da Figueira, ainda agitada, porém nada que se possa comparar com as horas da manhã, ruidosas de gritos e pregões até ao paroxismo. Respira-se uma atmosfera composta de mil cheiros intensos, a couve esmagada e murcha, a excrementos de coelho, a penas de galinha escaldadas, a sangue, a pele esfolada. Andam a lavar as bancadas, as ruas interiores, com baldes e agulheta, e ásperos piaçabas, ouve-se de vez em quando um arrastar metálico, depois um estrondo, foi uma porta ondulada que se fechou. Ricardo Reis rodeou a praça pelo sul, entrou na Rua dos Douradores, quase não chovia já, por isso pôde fechar o guarda-chuva, olhar para cima, e ver as altas frontarias de cinza parda, as fileiras de janelas à mesma altura, as de peitoril, as de sacada, com as monótonas cantarias prolongando-se pelo enfiamento da rua, até se confundirem em delgadas faixas verticais, cada vez mais estreitas, mas não tanto que se escondessem num ponto de fuga, porque lá ao fundo, aparentemente cortando o caminho, levanta-se um prédio da Rua da Conceição, igual de cor, de janelas e de grades, feito segundo o mesmo risco, ou de mínima diferença, todos porejando sombra e humidade, libertando nos saguões o cheiro dos esgotos rachados, com esparsas baforadas de gás, como não haveriam de ter as faces pálidas os caixeiros que vêm até à porta das lojas, com as suas batas ou guarda-pós de paninho cinzento, o lápis de tinta entalado na orelha, o ar enfadado de ser hoje segunda-feira e não ter o domingo valido a pena». In José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995, ISBN 972-21-0286-9

Cortesia de Caminho/JDACT