«Naquele ano de 1832 erguiam-se forcas em Portugal
e fábricas em Inglaterra. Irmanadas na paz, na guerra e na mútua desconfiança por
um velho tratado de cinco séculos, as duas nações pareciam agora unir-se também
pelas artes da construção civil e da engenharia. Porém, enquanto na pátria de Miguel
eram toscos cadafalsos que se erguiam nas praças e nas encruzilhadas, na terra de
Guilherme IV eram oficinas, minas e usinas que distribuíam a riqueza e a pobreza
em doses desiguais. Enfim, num lado reprimia-se a Revolução Liberal; no outro,
impunha-se a Revolução Industrial. A verdade, todavia, é que pereciam
mais pessoas nas fábricas do que nas forcas; e dentro daquele espírito prático
tão próprio dos países prósperos, até os mortos ingleses tinham a sua utilidade.
Afinal, como afirmaria poucos anos depois um escritor que consumia as insónias deambulando
pelos becos de Londres: era o melhor dos tempos,
era o pior dos tempos. Sim, era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos...
A mesma cidade que durante o dia fervilhava de actividade e de progresso, as mesmas
ruas que debaixo do sol abrigavam milhões de almas buliçosas, esvaziavam-se durante
a noite, substituindo-se o rumor e o calor das multidões pelo cavo silêncio das
horas mortas e pelo nevoento frio das terras de Sua Majestade britânica. Mas
quem estivesse desperto e atento poderia vislumbrar, por entre trevas e nevoeiro,
o abafado eco de carroças, os passos de homens furtivos e até, se para tal tivesse
coragem, o rangente e discreto ruído de alguns portões de ferro abrindo-se. E
então tornar-se-ia evidente, uma vez mais, que as coisas nem sempre são o que parecem...
Londres,
1832. O cemitério de Bloombury
Não fossem os sussurros de Joshua
Naples, o ruído das pás escavando o solo mole e as pancadas das gazuas forçando
a tampa do caixão, e poderíamos dizer que sobre o cemitério de Bloomsbury
tombara o sepulcral silêncio de todas as noites. E ainda que a luz da lamparina
mal servisse para vislumbrar a cova que os dois homens iam abrindo com gestos habituados,
para aquele efeito essa luz até cumpria bem a sua função, pois iluminava o
labor que ambos executavam com um inegável profissionalismo e um louvável amor à
arte. Por vezes, Ben Crouch endireitava-se, massajava os rins doridos, fruto de
ferimentos bélicos antigos, mas sobretudo de muitos anos de má vida, e mirava um
jovem que, postado a uma dúzia de passos, coçava a testa e vigiava vá-se lá saber
o quê. Cá para mim, o rapaz ainda se ca… todo.
Diga-se em abono da verdade que o
seu desabafo não disfarçava aquela pontinha de ternura que os velhos mestres
sentem pelos camaradas em início de carreira. O jovem acenou-lhes, mas nenhum dos
dois o percebeu, que a luz da lua nova não permitia que se visse grande coisa e
a luz da lamparina apenas alumiava a cova aberta, a terra fresca despejada sobre
a tela e o negro saco grande que aguardava o seu recheio. Não era o primeiro...
Ben Crouch mal ouviu o seu colega, que o murmúrio de Joshua Naples foi abafado pelo
som da tampa do caixão a dar de si. Então, ambos se ajoelharam e dirigiram a lanterna
para a cabeça do cadáver, enquanto o moço vigilante se acercou e fez questão de
olhar também numa mirada curiosa logo contrariada pela prudente ordem de Naples:
deixa isto connosco; vai vigiar para o teu posto.
Prudência inútil, diga-se desde já,
que o guarda de Bloomsbury estava devidamente subornado, permitindo assim que aquela
trupe tivesse entrado sem problemas pela
destrancada porta do cemitério em vez de saltar o muro à força de braços e tropeções,
esforço em tudo oposto, de resto, aos fracos rins de Crouch e à rígida
dignidade que Naples gostava de exibir. Aliás, o mais certo seria o guarda
estar, nesse momento, atascado nalgum pub
manhoso ali por perto, em Holborn ou em Bow Street, trauteando canções porcas, emborcando
gin falsificado e apalpando as nalgas
a alguma dama de vida horizontal com grossas camadas de pó de arroz disfarçando
a sífilis e a idade. O corpo saiu direitinho do caixão onde repousava desde há
umas horas, puxado pela corda que os dois homens fizeram deslizar por debaixo do
seu tronco. Nenhum fez qualquer comentário à desgastada juventude do cadáver, ao
seu rosto macerado pelas bexigas ou à roupa pelintra que depressa lhe tiraram antes
de o enfiarem, tão nuzinho como viera a este mundo, no saco negro entretanto aberto.
Do mesmo modo nenhum dos homens fez qualquer comentário sobre a nudez inerente aos
actos de nascer e de morrer, que o hábito da reflexão filosófica não era, entre
eles, prática corrente. A roupa..., murmurou Naples, apontando para a remendada
roupinha domingueira com a qual o defunto fora vestido». In Sérgio Luís Carvalho, O Exílio
do Último Liberal, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-898-845-221-4.
Cortesia de CAutor/JDACT