Recontro em Mofatra
«(…) Ainda em baixo, existia uma dependência exígua, paredes-meias
com outro diminuto espaço, que servia de quarto a Fernando, com uma cama
coberta de roupa safada, um caixote velho e um armário antigo mas soberbo. Ao
lado do balcão, elevava-se uma escada em madeira, com um corrimão apoiado em
robustos balaústres, que levava ao piso superior. Os quartos dispunham-se ao
redor de um corredor irregular. À porta de cada um, apoiados em suportes de
ferro, dois cotos de velas iluminavam o exíguo espaço de entrada. Um dos
quartos, ao fundo, uma pequena jóia de esmero, pertencia a Gilda, filha de
Fernando.
A estalagem já tivera a sua época de ouro, quando Beatriz Teles,
mulher do estalajadeiro, havia tomado a iniciativa de transformar a grande loja
de comércio dos progenitores do marido. Abrira todo o espaço térreo e dividira
o piso superior em quartos, na ideia de os ocupar com os viajantes que
passariam por Mofatra, assim que a antiga ponte romana fosse recuperada.
A iniciativa florescera rapidamente e a estalagem chegou a dispor de rica
decoração e de bons materiais. Todavia, durante uma incursão árabe na região,
chefiada por galegos, Beatriz havia desaparecido. A partir dessa altura,
Fernando viu-se sozinho, com Gilda ainda criança. Só após alguns anos, a
pequena conseguiu, a pouco e pouco, começou a ajudar o pai e a recuperar
lentamente o anterior aspecto da casa e o prestígio que havia granjeado.
Para tanto, o contributo dos Maia tinha sido decisivo nessa
altura, quando eles detinham, tal como agora, soberania sobre um vasto
território, que incluía a povoação de Mofatra. Com um sorriso simpático e face
trigueira, onde pontuavam olhos amendoados entre longas melenas, Gilda herdara
a perseverança, o denodo e a teimosia da mãe, a afirmação e a prudência do pai.
Habituara-se às constantes mudanças na estalagem, um local de passagem para
mercadores, aventureiros e refugiados das terras a sul do Douro. Todavia, ficara
decepcionada com os contactos súbitos. Por tal, impusera-se limites rígidos de
convivência com os forasteiros. Contudo, guardava espaços de afecto no coração,
na esperança de que alguém os invadisse.
Gilda dividia-se, agora, em tarefas de copa, de serviço às
mesas e de arrumo dos quartos. Lentamente, mas com rigor, a estalagem ia melhorando
as condições para albergar os clientes que, cada vez mais, preferiam aquele
refúgio, situado numa zona inóspita da margem direita do Douro. Nesta noite, a
rapariga não tinha mãos a medir. A sala da estalagem acolhia uma multidão que,
entre dentadas em galináceos e um roer de milho, vasos de vinho e cerveja,
glosava as últimas novas provenientes do sul. Ainda se comentava as
movimentações na região de Coimbra, quando já constava que os mouros se
mobilizavam novamente, concentrando em Alcácer um grande número de cavaleiros
vindos de Mértola e de Silves.
Na sala, o burburinho era
tremendo. De tal ordem que, praticamente ninguém descortinou a presença de
cinco indivíduos sujos e maltratados, sentados à volta de uma mesa no canto da
sala. Antes, haviam agarrado um jarro de vinho e servindo-se de pão, que
trincavam como se não comessem há muito. Em surdina, e num vocabulário que confundia
o berbere com a língua nativa, encharcaram-se em impropérios sobre uma figura
enigmática, assaz demoníaca, cuja existência atribuíam ao Inferno. Mostravam um
nervosismo de temor, olhando em redor como os estranhos em terra alheia que
eram. Infame sorte ou insano prodígio do qual fomos testemunhas, disse um, ferido
do pescoço ao ombro.- Enfrentámos o demónio em pessoa, acrescentou. Sorte a
nossa que tal espírito se desvanecesse, balbuciou outro, não menos molestado na
carantonha, ainda a pingar sangue. Mísera campanha a nossa, sem jorna nem
deleite, acrescentou ainda outro, entre os poucos dentes que ainda mostrava». In
Carlos Cordeiro, O Livro de Cale, O Monge Negro, 1060-1089, Publicações
Europa-América 2010, ISBN 978-972-1-06140-8.
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