«Nascido
em finais da Idade Média, François Villon é o primeiro poeta dos tempos
modernos. É autor da célebre Ballade des pendus e de La Ballade des
dames du temps jadis. Mas Villon é igualmente um notório meliante e um vadio.Em1462, aos trinta e um anos, é preso, torturado
e condenado a ser enforcado e estrangulado. No dia 5 de Janeiro de 1463, o Parlamento anula a sentença e bane-o
de Paris. Ninguém sabe o que terá sido feito dele a seguir...»
«O rosto afogueado do guarda assoma
na lucarna. Os olhos franzem-se-lhe para perscrutar a penumbra. O tilintar das suas
chaves ressoa através da fresta. François retém a respiração. A porta abre-se bruscamente
sobre a luz ofuscante de um archote. François encolhe-se no mesmo instante contra
a parede que ressuma, mas o carcereiro mantém-se especado no limiar, as costas curvadas,
com o chicote a pender-lhe molemente da cintura. Dois lacaios de libré penetram
na enxovia, na qual instalam uma mesinha com as pernas torneadas. Enquanto um deles
começa a varrer a palha e os excrementos com um ar repugnado, o outro traz duas
cadeiras estofadas e uma grande toalha bordada. Os seus gestos são preciosos.
Coloca em seguida duas palmatórias de cobre, uma garrafa de cristal e um jarro de
grés no meio de um conjunto sabiamente disposto de talheres de prata, de cestas
de biscoitos e peças de fruta, de pratos e travessas de faiança. Nenhum dos
dois criados se digna dirigir um olhar ao encarcerado que acompanha com
inquietação as suas operações. Terminada a tarefa, retiram-se ambos sem uma
palavra. O silêncio da noite envolve a prisão. Os próprios ratos, acoitados nas
fendas da muralha, deixam de se fazer ouvir.
Uma silhueta envergando uma túnica
de linho branco acende-se de súbito na moldura da porta. Numa das mãos, traz um
rosário de buxo. Na outra, uma lanterna cujos raios iluminam uma cruz escarlate
cosida à altura do peito. Guillaume Chartier, bispo de Paris, diz o visitante, ao
mesmo tempo que ordena ao guarda que liberte François das suas correntes. O eclesiástico
senta-se e enche os copos. Sem aparentar repugnância alguma pela sujidade e pelo
odor pestilento, insta polidamente o seu convidado a tomar lugar com ele à mesa.
François levanta-se com dificuldade. Puxa a camisa para baixo para dissimular as
chagas, compõe desajeitadamente o cabelo, endireita os ombros, logra até exibir
um ligeiro sorriso. O bispo estende-lhe uma coxa de peru assada. François
apodera-se da peça de carne e ataca-a com grandes dentadas, roendo-a até ao osso,
enquanto Guillaume Chartier lhe expõe o propósito da sua visita.
O prelado articula brandamente cada
palavra com a calma imperturbável própria dos homens de Igreja. A sua voz suave
flutua como um doce incenso no ar viciado do compartimento. François só a muito
custo escuta as palavras do sacerdote. Os vapores do vinho espicaçam-lhe as narinas.
Entre os grandes bocados de carne com que enche a boca e os ávidos tragos de Borgonha,
não apanha senão fragmentos esparsos. E contudo, deveria mostrar-se mais atento,
uma vez que Chartier, depois de ter reiterado a sua qualidade de enviado do rei,
evoca um meio que lhe permitirá escapar ao patíbulo. Ao estender o braço para uma
costeleta de reixelo bravo, François entorna uma molheira repleta de caldo de trufa.
Enquanto ri num escárnio tolo da sua própria inépcia, observa o dignitário pelo
canto do olho. Seria fácil enterrar-lhe um garfo em cheio no coração.
Guillaume
Chartier esperara melhor acolhimento, imaginando um ouvinte subjugado, suspenso
de cada sílaba. Mas ei-lo sentado diante de um glutão de patorras ásperas, que,
de borco sobre a escudela, se limita a devorar avidamente a sua pitança. A tarefa
que Luís XI lhe confiou requer tacto. O mais pequeno passo em falso comporta o risco
de desencadear uma tremenda crise política, até mesmo, talvez, um conflito armado.
Ora, o prisioneiro que ali está à sua frente não é reputado pela sua docilidade.
É um rebelde. E todavia é justamente nesse espírito de insubordinação que o bispo
de Paris aposta. Enquanto Villon agarra uma bela porção de queijo montanhês, Chartier
puxa de um volume que trouxera debaixo da capa. A encadernação é grosseira, uma
pele de marrã desprovida de qualquer ornamento. O título aparece manuscrito em letra
gorda na lombada: ResPublica». In Raphael
Jerusalmy, Os Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel Serras Pereira, Clube
do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-237-3.
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de CAutor/JDACT