quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Os Caçadores de Livros. Raphael Jerusalmy. «… a poesia escrita é apenas um marco, uma passagem, uma baliza de sinalização no campo imenso da actividade que a vida do poeta abraça»

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«Nascido em finais da Idade Média, François Villon é o primeiro poeta dos tempos modernos. É autor da célebre Ballade des pendus e de La Ballade des dames du temps jadis. Mas Villon é igualmente um notório meliante e um vadio.Em1462, aos trinta e um anos, é preso, torturado e condenado a ser enforcado e estrangulado. No dia 5 de Janeiro de 1463, o Parlamento anula a sentença e bane-o de Paris. Ninguém sabe o que terá sido feito dele a seguir...»

«O rosto afogueado do guarda assoma na lucarna. Os olhos franzem-se-lhe para perscrutar a penumbra. O tilintar das suas chaves ressoa através da fresta. François retém a respiração. A porta abre-se bruscamente sobre a luz ofuscante de um archote. François encolhe-se no mesmo instante contra a parede que ressuma, mas o carcereiro mantém-se especado no limiar, as costas curvadas, com o chicote a pender-lhe molemente da cintura. Dois lacaios de libré penetram na enxovia, na qual instalam uma mesinha com as pernas torneadas. Enquanto um deles começa a varrer a palha e os excrementos com um ar repugnado, o outro traz duas cadeiras estofadas e uma grande toalha bordada. Os seus gestos são preciosos. Coloca em seguida duas palmatórias de cobre, uma garrafa de cristal e um jarro de grés no meio de um conjunto sabiamente disposto de talheres de prata, de cestas de biscoitos e peças de fruta, de pratos e travessas de faiança. Nenhum dos dois criados se digna dirigir um olhar ao encarcerado que acompanha com inquietação as suas operações. Terminada a tarefa, retiram-se ambos sem uma palavra. O silêncio da noite envolve a prisão. Os próprios ratos, acoitados nas fendas da muralha, deixam de se fazer ouvir.
Uma silhueta envergando uma túnica de linho branco acende-se de súbito na moldura da porta. Numa das mãos, traz um rosário de buxo. Na outra, uma lanterna cujos raios iluminam uma cruz escarlate cosida à altura do peito. Guillaume Chartier, bispo de Paris, diz o visitante, ao mesmo tempo que ordena ao guarda que liberte François das suas correntes. O eclesiástico senta-se e enche os copos. Sem aparentar repugnância alguma pela sujidade e pelo odor pestilento, insta polidamente o seu convidado a tomar lugar com ele à mesa. François levanta-se com dificuldade. Puxa a camisa para baixo para dissimular as chagas, compõe desajeitadamente o cabelo, endireita os ombros, logra até exibir um ligeiro sorriso. O bispo estende-lhe uma coxa de peru assada. François apodera-se da peça de carne e ataca-a com grandes dentadas, roendo-a até ao osso, enquanto Guillaume Chartier lhe expõe o propósito da sua visita.
O prelado articula brandamente cada palavra com a calma imperturbável própria dos homens de Igreja. A sua voz suave flutua como um doce incenso no ar viciado do compartimento. François só a muito custo escuta as palavras do sacerdote. Os vapores do vinho espicaçam-lhe as narinas. Entre os grandes bocados de carne com que enche a boca e os ávidos tragos de Borgonha, não apanha senão fragmentos esparsos. E contudo, deveria mostrar-se mais atento, uma vez que Chartier, depois de ter reiterado a sua qualidade de enviado do rei, evoca um meio que lhe permitirá escapar ao patíbulo. Ao estender o braço para uma costeleta de reixelo bravo, François entorna uma molheira repleta de caldo de trufa. Enquanto ri num escárnio tolo da sua própria inépcia, observa o dignitário pelo canto do olho. Seria fácil enterrar-lhe um garfo em cheio no coração.
Guillaume Chartier esperara melhor acolhimento, imaginando um ouvinte subjugado, suspenso de cada sílaba. Mas ei-lo sentado diante de um glutão de patorras ásperas, que, de borco sobre a escudela, se limita a devorar avidamente a sua pitança. A tarefa que Luís XI lhe confiou requer tacto. O mais pequeno passo em falso comporta o risco de desencadear uma tremenda crise política, até mesmo, talvez, um conflito armado. Ora, o prisioneiro que ali está à sua frente não é reputado pela sua docilidade. É um rebelde. E todavia é justamente nesse espírito de insubordinação que o bispo de Paris aposta. Enquanto Villon agarra uma bela porção de queijo montanhês, Chartier puxa de um volume que trouxera debaixo da capa. A encadernação é grosseira, uma pele de marrã desprovida de qualquer ornamento. O título aparece manuscrito em letra gorda na lombada: ResPublica». In Raphael Jerusalmy, Os Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel Serras Pereira, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-237-3.

Cortesia de CAutor/JDACT