Reavaliação dos Critérios de Produção Literária
do Século XVI
«Escritas sob a influência de um conjunto de
preceitos e lugares-comuns vigentes no meio humanista do renascimento
português, as orações de Sapiência do século XVI que têm vindo a ser estudadas constituem
um corpus vasto e riquíssimo, contributo notável para o estudo da
evolução do ensino, da sociedade, do pensamento e da cultura no Portugal do seu
tempo. Revisitar esta produção literária, bem como os estudos feitos a seu
propósito será sempre útil ao investigador do humanismo. As orações de Sapiência
do século XVII, porém, mais distantes da observância daqueles preceitos, não foram
ainda objecto de um estudo sistemático. Talvez porque não foram publicadas e
decerto porque são menos conhecidas, estas orações permanecem copiadas em
volumes manuscritos como tanta outra literatura novilatina, mas valeria a pena
conhecê-las mais profundamente pois documentam a evolução dos gostos e
critérios de produção literária do seus contemporâneos e oferecem por vezes
iluminação e esclarecimento sobre factos, acontecimentos e pessoas do seu
tempo.
O que à partida desperta mais interesse
nestes textos é a sua evidente diferença em relação aos textos congéneres do
século XVI. Podemos agora falar com mais propriedade da Oração de Sapiência
do mestre de Retórica, Francisco Machado, da Companhia de Jesus proferida
na Universidade de Coimbra em 1629.
Mesmo uma leitura superficial desta Oração nos permite admirar a sua
originalidade e apreciar agradavelmente as diversões que o autor nos oferece. Habituado
à unidade partilhada pelas orações de quinhentos que o modelo ciceroniano inspira,
o leitor de hoje não pode deixar de se surpreender com o texto de Machado que,
sem dúvida, nos revela o cansaço do estereótipo daqueles textos e a procura da
novidade, quer no conteúdo, quer na forma. O discurso de Francisco Machado não
cede o habitual destaque ao louvor de cada disciplina, e pouco ou nada diz de
novo acerca de cada campo do saber. O que impressiona o leitor não é, pois, o
tema, mas a argumentação. Na verdade, as disciplinas não constituem a matéria
fundamental do discurso, elas são apenas o pretexto para descrições ou
episódios mais ou menos longos que, esses sim, impressionam o leitor.
A diferença deste texto decorre, pois, de
uma opção do orador que, não isoladamente, mas no contexto da sua geração,
denuncia a valorização do mouere e do delectare em prejuízo do docere.
Sem o sacrifício, porém, da unidade e coerência da oração que os princípios da
harmonia, brevidade e equilíbrio clássicos inspiram, Francisco Machado revela
uma clara preferência pelo recurso dos exempla e entre estes opta
sobretudo pela narratio, evitando o abuso e o cansaço destas formas pelo
recurso pontual à forma breuis e à descriptio. Optando pela forma
narrativa do exemplum Machado introduz autênticas digressões que lhe
permitem revelar o seu talento e virtuosismo na capacidade de imaginar e compor
os episódios. Um destes é o episódio do ataque de piratas holandeses à
vila de Buarcos socorrida depois por um exército de mestres e alunos
da Universidade de Coimbra. Este é um caso típico de argumentação absolutamente
exterior à demonstração em causa.
O tema que confere unidade à oração é o
louvor das riquezas da Sabedoria e a demonstração de como elas são superiores a
todas as outras e as únicas que devemos ter por verdadeiras. Vejamos como
Francisco Machado estabelece a sua ligação com o episódio com que nos quer
brindar. Depois do louvor do Direito no qual Francisco Machado usa o tópico já recorrente
segundo o qual os estados prosperam e vivem em paz quando respeitam as leis
sagradas e civis, e o aplica a Portugal a quem não faltaria a fazenda se
guardasse o tesouro de sabedoria da justiça, o autor segue para uma digressão
que aproveita o ensejo da alusão ao estado crítico do reino e à grandeza perdida
de Portugal. A fuga para este excurso não é gratuita, Machado não perde a oportunidade
de, por meio deste artifício, trazer ao auditório, não um exemplum clássico,
nem um outro inteiramente inaudito, mas um episódio conhecido da comunidade
universitária que decerto se interessaria vivamente pela narrativa de um
acontecimento que recentemente a envolvera.
O excurso é anunciado por uma máxima que
Machado se propõe reformar: se os antigos diziam que o dinheiro é o nervo da
guerra, com mais propriedade o mesmo se diria da Sabedoria, pois já muitas
guerras terão começado sem dinheiro mas nenhuma sem Sabedoria. Veteres
belli neruos pecuniam appellarunt, nec immerito. Quemadmodum enim corpus neruis
continetur, ac sustentatur, sic bellum pecunia. Rectius tamen belli neruos
dicerent sapientiam, guia sine pecunia nonnunquam bellum inferri poterit, non
uero sine sapientia. Tollite stipendia, uectigalia, commeatus, praemia, dona
militaria; si una supersit sapientia, nihil eorum desiderabitur. Tollite signa,
hastas, gládios clypeos: tollite reliquum armorum genus, si unus tantum sapientiae
thesaurus non deficiat, haec omnia dimicabunt. Os antigos chamavam ao
dinheiro, e não sem fundamento, o nervo da guerra. Com efeito, assim
como o corpo é mantido e suportado pelos nervos, também a guerra o é pelo
dinheiro. Com mais razão, porém, diriam que a Sabedoria é o nervo da guerra,
pois sem dinheiro, não poucas vezes poderá alguém ter começado uma guerra, não
porém sem Sabedoria. Acabai com os soldos, com as rendas, com os lucros, com os
prémios, com as recompensas militares; se apenas a Sabedoria subsistir, não se
sentirá a falta de nenhuma destas coisas. Deitai mão dos estandartes, das
lanças, das espadas afiadas, deitai mão de tudo o mais que são armas. Se somente
o tesouro da Sabedoria vos não faltar, todas elas vos servirão». In Carlota
Miranda Urbano, Piratas em Buarcos, Digressão Épica na Oração de Sapiência do padre
Francisco Machado, 1629, Revista Humanitas, volume XLIX, 1997, Universidade de
Coimbra.
Cortesia da UCoimbra/JDACT