quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Tudor. O Segredo. CW Gortner. «Os papistas eram os católicos. Para eles, o chefe da igreja era o papa em Roma e não o nosso soberano. Dona Alice era católica; embora me tivesse educado na fé calvinista, como mandava a lei»

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1553. Whitehall
«(…) A família adquirira estantes e estantes de tomos, sobretudo para alardearem a sua riqueza, já que os seus varões se mostravam mais orgulhosos das suas proezas nas caçadas do que de qualquer talento que pudessem ter para as letras. Quanto a mim, aprender tornou-se uma paixão. Naqueles tomos bafientos descobri um mundo sem limites, no qual podia ser quem quisesse. Contive um sorriso. Mestre Shelton também era instruído, no seu caso, isso era essencial para administrar as despesas da família. Mas ele fazia questão de dizer que nunca aspirara a mais do que lhe cabia nesta vida e que não toleraria tai presunção a ninguém. Na sua opinião, nenhum servidor, por mais empenhado que fosse, deveria aspirar a ser versado na filosofia humanista de Erasmo ou nos ensaios de Thomas More, quanto mais fluente no francês ou no 1atim. Se soubesse tudo o que o dinheiro que gastara na minha tutoria comprara naqueles últimos anos, de certeza que não ficaria satisfeito.
Em silêncio, chegámos ao alto da colina. Com a estrada a entrar por um vale despido de árvores, a aridez da paisagem chamou a minha atenção, habituado como estava à vegetação desregrada da região central da Inglaterra. Embora não nos tivéssemos afastado muito dessa zona, sentia-me como se tivesse entrado numa terra estrangeira. O fumo sujava o céu como dedadas. Avistei duas colinas gémeas e depois uma imponente muralha que se erguia em torno de uma desordenada extensão de casas, de torres de igreja, de propriedades à beira-rio e de infindáveis ruas com gelosias a todo o seu comprimento, com o largo leito do Tamisa a cortar pelo meio de todo aquele cenário. Ali está ela, anunciou mestre Shelton. A cidade de Londres. Em breve terás saudades da paz do campo, isto se algum assassino ou se a peste não te deitarem a mão antes disso.
Apenas conseguia olhar. Londres era tão densa e ameaçadora como eu a imaginara, com milhafres às voltas no céu, como se o próprio ar estivesse putrefacto. Mas, à medida que nos aproximávamos, vi, adjacentes àquela muralha serpenteante, pastos salpicados de animais, canteiros de ervas aromáticas, pomares e prósperas aldeolas. Parecia haver ainda muita vida rural em Londres. Chegámos a uma das sete portas da cidade. Fascinado, eu tentava reparar em tudo ao mesmo tempo, no grupo de mercadores demasiado bem vestidos para o carro de bois em que seguiam; no latoeiro que, a cantarolar, carregava uma canga na qual chocalhavam facas e partes de armaduras; ou nos incontáveis pedintes, aprendizes, indivíduos de ar formal, talhantes, curtidores e peregrinos. As vozes entrechocavam-se em discussão com os guardas postados na porta da cidade, que tinham travado o avanço de toda aquela gente. Quando mestre Shelton e eu nos juntámos à fila, ergui o olhar para a porta que se agigantava à nossa frente, com os seus imponentes torreões e as suas ameias, que mais pareciam presas enegrecidas pela fuligem. De súbito, fiquei petrificado; uma colecção de cabeças fervidas em piche e enfiadas em estacas fitava-nos com as suas órbitas vazias, um arrepiante festim para os corvos, que iam debicando a carne nauseabunda. Papistas..., murmurou mestre Shelton, parado ao meu lado. Sua Senhoria, o duque, ordenou que as suas cabeças fossem exibidas como aviso.
Os papistas eram os católicos. Para eles, o chefe da igreja era o papa em Roma e não o nosso soberano. Dona Alice era católica; embora me tivesse educado na fé calvinista, como mandava a lei, todas as noites eu via-a rezar com o seu rosário. Foi nesse instante que me dei conta de quão longe estava do único lar que alguma vez conhecera. Lá, ninguém reparava nos costumes dos outros. Ninguém se teria lembrado de fazer queixa às autoridades; isso só trazia chatices. Em Londres, porém, parecia que um homem podia perder a cabeça pela sua fé. Um guarda de ar desmazelado aproximou-se de nós num andar arrastado, limpando as mãos engorduradas à túnica. Ninguém pode entrar!, vociferou. Por ordem de Sua Senhoria, o duque, a partir de agora as portas da cidade estão fechadas! Ao reparar no brasão no manto de mestre Shelton, deteve-se. Estais ao serviço de Northumberland? Sou o administrador-mor da esposa de Sua Senhoria. Mestre Shelton tirou do alforge um rolo de documentos. Trago aqui salvo-condutos para mim e para o rapaz. Somos esperados na corte. Ah sim?, O guarda lançou-lhe um olhar malicioso. Bom, todo o desgraçado que aqui chega diz sempre que o esperam nalgum lado». In CW Gortner, O Segredo dos Tudor, 2011, tradução de Miguel Romeira, 20/20 Editora, Topseller, 2014, ISBN 978-989-862-643-1.

Cortesia de Topseller/20/20Editora/JDACT