1553. Whitehall
«(…) A família adquirira estantes
e estantes de tomos, sobretudo para alardearem a sua riqueza, já que os seus
varões se mostravam mais orgulhosos das suas proezas nas caçadas do que de
qualquer talento que pudessem ter para as letras. Quanto a mim, aprender
tornou-se uma paixão. Naqueles tomos bafientos descobri um mundo sem limites,
no qual podia ser quem quisesse. Contive um sorriso. Mestre Shelton também era
instruído, no seu caso, isso era essencial para administrar as despesas da
família. Mas ele fazia questão de dizer que nunca aspirara a mais do que lhe cabia
nesta vida e que não toleraria tai presunção a ninguém. Na sua opinião, nenhum
servidor, por mais empenhado que fosse, deveria aspirar a ser versado na filosofia
humanista de Erasmo ou nos ensaios de Thomas More, quanto mais fluente no
francês ou no 1atim. Se soubesse tudo o que o dinheiro que gastara na minha
tutoria comprara naqueles últimos anos, de certeza que não ficaria satisfeito.
Em silêncio, chegámos ao alto da
colina. Com a estrada a entrar por um vale despido de árvores, a aridez da paisagem
chamou a minha atenção, habituado como estava à vegetação desregrada da região central
da Inglaterra. Embora não nos tivéssemos afastado muito dessa zona, sentia-me
como se tivesse entrado numa terra estrangeira. O fumo sujava o céu como
dedadas. Avistei duas colinas gémeas e depois uma imponente muralha que se
erguia em torno de uma desordenada extensão de casas, de torres de igreja, de
propriedades à beira-rio e de infindáveis ruas com gelosias a todo o seu
comprimento, com o largo leito do Tamisa a cortar pelo meio de todo aquele
cenário. Ali está ela, anunciou mestre Shelton. A cidade de Londres. Em breve
terás saudades da paz do campo, isto se algum assassino ou se a peste não te
deitarem a mão antes disso.
Apenas conseguia olhar. Londres
era tão densa e ameaçadora como eu a imaginara, com milhafres às voltas no céu,
como se o próprio ar estivesse putrefacto. Mas, à medida que nos aproximávamos,
vi, adjacentes àquela muralha serpenteante, pastos salpicados de animais,
canteiros de ervas aromáticas, pomares e prósperas aldeolas. Parecia haver ainda
muita vida rural em Londres. Chegámos a uma das sete portas da cidade.
Fascinado, eu tentava reparar em tudo ao mesmo tempo, no grupo de mercadores
demasiado bem vestidos para o carro de bois em que seguiam; no latoeiro que, a
cantarolar, carregava uma canga na qual chocalhavam facas e partes de
armaduras; ou nos incontáveis pedintes, aprendizes, indivíduos de ar formal,
talhantes, curtidores e peregrinos. As vozes entrechocavam-se em discussão com
os guardas postados na porta da cidade, que tinham travado o avanço de toda
aquela gente. Quando mestre Shelton e eu nos juntámos à fila, ergui o olhar
para a porta que se agigantava à nossa frente, com os seus imponentes torreões
e as suas ameias, que mais pareciam presas enegrecidas pela fuligem. De súbito,
fiquei petrificado; uma colecção de cabeças fervidas em piche e enfiadas em
estacas fitava-nos com as suas órbitas vazias, um arrepiante festim para os
corvos, que iam debicando a carne nauseabunda. Papistas..., murmurou mestre
Shelton, parado ao meu lado. Sua Senhoria, o duque, ordenou que as suas cabeças
fossem exibidas como aviso.
Os papistas eram os católicos.
Para eles, o chefe da igreja era o papa em Roma e não o nosso soberano. Dona
Alice era católica; embora me tivesse educado na fé calvinista, como mandava a
lei, todas as noites eu via-a rezar com o seu rosário. Foi nesse instante que
me dei conta de quão longe estava do único lar que alguma vez conhecera. Lá,
ninguém reparava nos costumes dos outros. Ninguém se teria lembrado de fazer
queixa às autoridades; isso só trazia chatices. Em Londres, porém, parecia que
um homem podia perder a cabeça pela sua fé. Um guarda de ar desmazelado
aproximou-se de nós num andar arrastado, limpando as mãos engorduradas à túnica.
Ninguém pode entrar!, vociferou. Por ordem de Sua Senhoria, o duque, a partir
de agora as portas da cidade estão fechadas! Ao reparar no brasão no manto de
mestre Shelton, deteve-se. Estais ao serviço de Northumberland? Sou o
administrador-mor da esposa de Sua Senhoria. Mestre Shelton tirou do alforge um
rolo de documentos. Trago aqui salvo-condutos para mim e para o rapaz. Somos
esperados na corte. Ah sim?, O guarda lançou-lhe um olhar malicioso. Bom, todo
o desgraçado que aqui chega diz sempre que o esperam nalgum lado». In CW
Gortner, O Segredo dos Tudor, 2011, tradução de Miguel Romeira, 20/20 Editora,
Topseller, 2014, ISBN 978-989-862-643-1.
Cortesia de
Topseller/20/20Editora/JDACT