«Os
cadeirais de coro medievais devem ser os locais em que a decoração melhor
espelha o cariz estremado e contraditório da realidade religiosa e social da
época. Na sua decoração conflui pacificamente o sagrado e o profano, erudito e
popular, o quotidiano e a lenda, numa série de referências históricas
ancestrais. Esta tradição desenvolve-se na marginalia
que decorre nos locais mais escondidos como as misericórdias (as misericórdias
consistiam em mísulas adossadas à parte inferir das cadeiras, que serviam de
apoio aos religiosos aliviando-lhes o cansaço sem que perdessem a obrigatória
postura em pé. O facto de ficarem escondidas, acrescido ao próprio uso a que se
destinava, explica em grande parte a aceitação de cariz tão licencioso e
profano), apoia-mãos e platibandas de apoios
dos livros corais, interpenetrando-se com a icnografia de cariz sacro,
amplificada em locais mais destacados dos espaldares e coroamento superior. Estes
espaços secundários funcionam como depósito de temas populares, ao sabor da
memória dos artífices que livremente os esculpiam, transformado o cadeiral num
imenso livro sagrado que se faz declinar como uma enciclopédia. Fechados aos
olhares da sociedade, dão livre curso a toda uma tradição satírica e popular em
que o lema ridendo castigat mores se transforma também numa
liberdade ímpar dos artífices deixarem a marca profana e popular tacitamente
aceite pelas entidades religiosas. Nos dois únicos exemplares medievos que
chegaram até nós, o cadeiral do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e o exemplar
da Sé do Funchal, a gramática das formas e anotações ao tempo e que se vivia
convivem com este gosto do riso, na memória de contos, provérbios e tradições
orais que com elas se cruzam.
O mundo feminino às avessas
Tradicionalmente,
a castidade feminina era representada pela imagem de uma jovem sentada a fiar
com a roca e o fuso pois, como dizia o ditado: a fiar e a tecer ganha a mulher de comer. No entanto, o casto
modelo nem sempre era seguido e a sátira literária e iconográfica encarregou-se
de glosar a sua inversão. O bestiário satírico costumava representar uma javali
atarefada na fiação doméstica como sinónimo de prostituição. Encontramo-la numa
das misericórdias do cadeiral da Sé do Funchal, idêntica a outras javalis-fiadeiras como se podem observar
nos cadeirais de Kempen na Alemanha; Ciudad Rodrigo; Toledo ou da igreja de S.
Nicolau em Amsterdão, bem como em gárgulas e gravuras da época.
Neste caso,
os atributos luxuriosos da simbologia animal sintonizam-se semanticamente com o
verbo fiar, usado como sinónimo de prostituição. Isabel Gomez Mateo, localizou
o tema na tragicomédia La Celestina, de Fernando Rojas, editada em Burgos no
ano de 1499. No terceiro acto da
peça, a velha alcoviteira que trata de tecer as tramas dos amores dos jovens,
lamenta que pocas vírgenes, a Dios
gracias, has tú visto en esta ciudad que hayan abierto tienda a vender de quien
yo no haya sido corredora de su primer hilado. E mais adiante insiste-se na
associação entre o fuso e o falo masculino: con mal está el huso cuando la
barba no anda de suso. Por cá Gil Vicente faz alusão ao enfado que o
casto lavor provocava em jovens casadoiras. Na Farsa Quem tem Farelos a
jovem casadoira queixa-se que Faz a moça mui mal feita, corcovada,
contrafeita, de feição de meio anel; e faz muito mal carão, e mal costume
dolhar.
E a Inês
Pereira que antes quer asno que a carregue que cavalo que a derrube,
também estava disposta a tudo para se ver livre dessas canseiras inúteis,
renegando deste lavrar e do primeiro que o usou; ó diabo que o eu dou, que
tão mau é d’aturar. Por vezes as aparências iludem, a velha rameira
Celestina ou a Brígida Vaz do Auto da Índia quando se lembram da
roca e do fuso não parece ser em púdico tarefa caseira que estão a pensar, quero
fiar e cantar / segura de o nunca ver suspirava a abandonada mulher do
mercador embarcado desejando que ele não tornasse vivo a Lisboa. Um ditado da
época lembrava de forma mais explícita este mundo às avessas: quando a
rameira fia, o letrado reza, e o escrivão pergunta quantos são do mês, mal vai
a todos três. Esta relação satírica foi recuperada por Goya que não esquece
as fiadeiras nas suas gravuras satíricas. No Álbum B que antecede os Caprichos
assim representa as raparigas de má vida, tonsuradas e encerradas no
reformatório, acrescentando a legenda irónica: San Fernando como hilan! Mais
tarde serão representadas a depenar os
frangos que se deixam apanhar nas suas teias». In Maria Manuela Braga, A Marginalia Satírica nos cadeirais do
Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e Sé do Funchal, Revista
Medievalista, director Luís Krus, Ano 1, Nº 1, Instituto de Estudos Medievais,
FCSH-UNL, FCT, 2005, ISSN 1646-740X.
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