A luta
dos sexos
«(…) Uma das
misericórdias do exemplar coimbrão assinala este tema, ainda que o
artífice apenas o esboce, representando um cão enfiado num caldeirão. No
cadeiral de Léon, ou o de Kleve na Alemanha, a memória perdida reflecte-se em
idêntica simplificação mas podem encontrar-se ilustrações mais completas em
vários exemplares ingleses. O caldo
entornado parece ser o dito que ainda hoje melhor se aplica a esta bulha
entre esponsais. Louis Mateterlink e Francis Bond associaram a figuração a
provérbios flamengos e ingleses coevos: o
pote está vazio e já foi dado a lamber ao cão ou Dog and Pot e Dog and Crock. Bond recorda que no seu tempo ainda
era comum verem-se letreiros de aviso com estes ditos à porta das tabernas da província.
Noutros casos o poder feminino serve para caricaturar os homens que se entregam
em excesso a prazeres espirituais, esquecendo-se dos terrenos. Alexandre o Grande, Virgílio e Aristóteles não
escaparam às troças, muito sábios em teoria mas muito fáceis de se deixarem
levar pelas manhas femininas. O exemplar ilhéu inclui o Lai de Virgílio,
vendo-se o sábio pendurado no cesto que a amada lhe lançaram da janela do
castelo, em falsa promessa de amores nocturnos. O canto tradicional do Lai
de Virgílio é citado no Libro de Buen Amor de Harcipreste
de Hita: Al sabidro Virgílio, como dize en el testo, / enganolo la duena,
quando l’colgó en el cesto,/ Coyando que l’sobia à su torre por esto. Sentido
idêntico e com maior divulgação possui o Lai de Aristóteles, satirizando
as fraquezas carnais do velho filósofo, humilhado e cavalgado pela astuta Phyllis
que assim decidira provar a Alexandre que os sábios também caem.
A
sátira religiosa
A sátira religiosa
é abundante na marginalia das
cadeiras corais, mostrando uma enorme capacidade de autocrítica por parte
do clero. Várias personalidades religiosas redigiram textos jocosos a este
propósito. O papa Leão XIII defendia que a Igreja também devia cuidar dos
aspectos humanos e estes são revelados com a maior franqueza e honestidade.
Apoiava-se numa passagem do Livro de Jehovah Deus não precisa para nada da
vossa hipocrisia. Os próprios religiosos redigiam e divulgavam estas
facécias. Johannes Pauli, monge alemão, recolheu uma série de farsas
carnavalescas destinadas aos próprios monges. A colectânea foi publicada em 1522 com o título Riso e Seriedade (Schmpof und Ernst). No seu prefácio
o autor explica que o livro se destina aos
cenobitas reclusos nos mosteiros para que tenham com que se rir e distrair, de
modo a descansar o espírito, pois não podem viver da ascese. Nos cadeirais,
os artífices davam forma a estas brincadeiras recorrendo geralmente ao
tradicional bestiário, ainda que muitas vezes fossem mais directos, não
deixando margens para dúvidas acerca da identidade dos visados.
O tema do
raposo a pregar às galinhas que se encontra no cadeiral do Funchal incide sobre
a desconfiança que o próprio clero nutria pelas ordens mendicantes,
responsáveis por percas de privilégios antigos. O matreiro personagem do romance
de crítica feudal (redigido no ano de 1176 pelo francês Pierre de Saint
Clou, à custa da congregação de um vasto repertório fabulado de origens antigas
que remontam ao Physiolugus, conheceu uma série de adaptações e
versões que fizeram dele um dos romances mais populares do final da Idade Média)
aparece vestido de frade, a pregar do alto do púlpito para uma assistência de
galináceos. Encantadas com os dotes de oratória, as galinhas nem se dão conta
do destino que as espera no final do sermão. A brincadeira era glosada na
literatura popular, fazendo-se trocadilhos com a passagem da Epístola de S.
Paulo aos Filipenses (1,8): Testis est mihi Deus, quam cupium vos visceribus
meis. Deus é testemunha de quanto vos quero nas minhas entranhas, em lugar
de no mais profundo do meu ser. O refrão lá dizia que frayle
franciscano, el papo abierto,y el saco cerrado e o abade donde cana
dali janta. Gil Vicente no Clérigo da Beira também recorda a
ladainha do frade mundano enquanto caminha com o filho em busca de boa caça: Lauda
Dominum die coelis Pois os coelhos são seus.
O clero estava mais próximo do povo mas também era muito ignorante. Muitos jovens ingressavam nas ordens sacras praticamente analfabetos e destituídos qualquer formação espiritual. Em 1467 o arcebispo de Lisboa depara com confessores que nem a fórmula da absolvição sabiam, o que não admira pois também era comum não se confessarem, e obriga-os a escrevê-la e a decora-la. No entanto, parece que estas fraquezas eram bem suportadas pelas entidades superiores, contando que materialmente não fossem esquecidos. A um clérigo que tinha por hábito frequentar as tabernas e aparecer em estado impróprio na igreja, o arcebispo castiga-o com a uma pequena multa de 50 reais com a particularidade desta se repetir sempre que reincidisse no pecado etílico... O canto do Ofício Divino era tido por enfado a que muitos religiosos se furtavam. Quando apareciam no coro, palravam, faziam jeitos de esgares uns para os outros; não estavam quietos, trocavam palavrões, chegando mesmo a haver desacatos mais gravosos. Certo é que estes desmandos não eram exclusivos do baixo clero, pois também havia sacerdotes que nem se falavam e cujas brigas ficaram memoráveis. No cadeiral madeirense a sátira é implacável: à semelhança de iconografias congéneres, vê-se um porco a tentar acompanhar o ofício pelo missal, enquanto que noutra misericórdia é o asno que passa com a língua os cânticos religiosos suspensos no facistol». In Maria Manuela Braga, A Marginalia Satírica nos cadeirais do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e Sé do Funchal, Revista Medievalista, director Luís Krus, Ano 1, Nº 1, Instituto de Estudos Medievais, FCSH-UNL, FCT, 2005, ISSN 1646-740X.
O clero estava mais próximo do povo mas também era muito ignorante. Muitos jovens ingressavam nas ordens sacras praticamente analfabetos e destituídos qualquer formação espiritual. Em 1467 o arcebispo de Lisboa depara com confessores que nem a fórmula da absolvição sabiam, o que não admira pois também era comum não se confessarem, e obriga-os a escrevê-la e a decora-la. No entanto, parece que estas fraquezas eram bem suportadas pelas entidades superiores, contando que materialmente não fossem esquecidos. A um clérigo que tinha por hábito frequentar as tabernas e aparecer em estado impróprio na igreja, o arcebispo castiga-o com a uma pequena multa de 50 reais com a particularidade desta se repetir sempre que reincidisse no pecado etílico... O canto do Ofício Divino era tido por enfado a que muitos religiosos se furtavam. Quando apareciam no coro, palravam, faziam jeitos de esgares uns para os outros; não estavam quietos, trocavam palavrões, chegando mesmo a haver desacatos mais gravosos. Certo é que estes desmandos não eram exclusivos do baixo clero, pois também havia sacerdotes que nem se falavam e cujas brigas ficaram memoráveis. No cadeiral madeirense a sátira é implacável: à semelhança de iconografias congéneres, vê-se um porco a tentar acompanhar o ofício pelo missal, enquanto que noutra misericórdia é o asno que passa com a língua os cânticos religiosos suspensos no facistol». In Maria Manuela Braga, A Marginalia Satírica nos cadeirais do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e Sé do Funchal, Revista Medievalista, director Luís Krus, Ano 1, Nº 1, Instituto de Estudos Medievais, FCSH-UNL, FCT, 2005, ISSN 1646-740X.
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de RMedievalista/JDACT