«Ninguém me é
estranho, se for bom. A natureza é só uma para todos; a diferença está no
carácter». In Menandro (342-C.242 a. C)
A morte da águia
«(…) Todas as
dinastias conhecem dramas familiares. Tomamo-nos porém de espanto com os Lágidas,
capazes de conceber projectos generosos e de patrocinar uma civilização eficaz
e refinada, mas que ao mesmo tempo se degladiam em rivalidades sangrentas
levadas ao limite do admissível. Passado o período heróico das conquistas dos diádocos
descendentes de Alexandre, a sucessão ao trono passou a pertencer ao
primogénito. Muitas vezes aconteceu, porém, ser este afastado ou mesmo
assassinado, por ter o rei preferido outro filho ou mesmo a descendência de uma
outra união, como foi o caso de Ptolomeu Sóter. Ambiciosos e usurpadores
estavam assim sempre à espreita, criando facções rivais que se combatiam entre
si, com isto enfraquecendo o poder real. A ocupação da terra egípcia pelos
herdeiros de Alexandre ocorrera, porém, sob bons auspícios. Ptolomeu Sóter,
um modelo de soberano, morrera no seu leito, contando a já avançada idade de
oitenta e quatro anos. Depois, o bastardo legitimado Filadelfo, que o
Sóter associara ao poder desde há algum tempo em detrimento do primogénito Ptolomeu
Ceraunos, ocupara praticamente sem problemas de maior o trono do Egipto
após a morte do pai. A sábia medida do Sóter tivera o mérito de colocar os
ambiciosos perante um facto consumado.
Além da família,
Arsínoe Filadelfa não tinha junto dela seu igual. Todavia, o poder
ambicionado, sempre tão perto, constantemente lhe passara ao lado. Ela, porém,
soubera conquistá-lo. Traçara a sua rota ela mesma. Teve de fazer concessões,
pactuar. Era uma questão de condição. Nunca o pai pensou nela, sequer por um
instante, para lhe suceder. Nem o próprio Alexandre delegara em Olímpia, sua
mãe, a regência do trono da Macedónia, estando ele em campanha na Ásia.
Chamara Antípatros, um dos seus mais conceituados generais, que já
servira seu pai. Era a lei. Muitos se agitavam na escala social: de um lado
encontravam-se os servidores, do outro os grandes da corte, que enxameavam à
volta do trono num clima de suspeita e de intriga em que todos se vigiavam: os
amigos e ministros do rei, os encarregados de negócios, embaixadores, o
grão-chanceler, o arquidicasta, o epiestratego, o dioceta bem como uma multidão imensa de nomarcas, estrategos e secretários reais, artistas, músicos e
concubinas. Cada palavra era ouvida, pesada, difundida, e era preciso exercer
vigilância sobre si próprio para não cometer erros fatais. O total isolamento
na corte não era possível; apenas o tipo de isolamento que se tem no meio de
uma multidão.
Satyros fora um
esporádico aliado de Arsínoe, um estratego militar que lhe era dedicado
para além dos limites do que seria admissível... mas a insegurança de Filadelfo,
cioso das atenções da irmã porque na verdade pressentia, com ou sem fundamento,
conspirações em toda a parte, condenara-o ao exílio forçado em Coptos,
onde acabaria por morrer de forma suspeita. Era um facto que os antepassados
de Alexandre deviam o seu poder à lei do mais forte. As cenas de
embriaguez, a reputação de alcoolismo de seu pai, Filipe da Macedónia, eram
sobejamente conhecidas. Havia taras na família, males incuráveis, que os
excessos do monarca, o atraso mental de seu filho Filipe Arrideu, e os métodos
sanguinários usados pelo soberano para suplantar os seus rivais no acesso ao
trono comprovavam. Sendo regente por morte do irmão Perdiccas, em combate,
Filipe rapidamente se desembaraçara do sobrinho herdeiro do trono. Depois,
tivera nada menos do que sete esposas! As desordens na casa de Filipe,
os seus casamentos e amores, levantavam problemas que por contágio se
estendiam do gineceu ao reino, originando violentas querelas sobretudo com
Olímpia, sua terceira esposa e mãe de Alexandre, uma fogosa princesa do
selvático Epiro, que incitava o filho contra o pai.
O intemperante
monarca, amante de mulheres e de vinho, resoluto e liberto de escrúpulos, era,
não obstante, dotado de notável talento político, militar e diplomático.
Tornou-se, no bom e no mau sentido, modelo de muitos monarcas. Conhecia a
fraqueza e a venalidade dos homens e clamava sem pejo que conquistaria qualquer
cidade onde pudesse fazer chegar um carregamento de ouro. E não tinha Harpalo, o infiel tesoureiro de Alexandre, deixado bem à
vista de todos que assim era? Não foram muitos políticos atenienses, e
oradores probos acima de qualquer suspeita, acusados de se terem comprometido
com o ouro oferecido por Harpalo? Não
recebera também o impoluto Demóstenes, ele próprio, vinte talentos para acalmar
os seus credores mais importunos? As minas de ouro da Trácia e da
Macedónia rendiam a Filipe nada menos que dez mil talentos por ano. O
monarca macedónio podia bem corromper e seduzir os helenos. Se a estirpe
macedónia demonstrara por vezes brutalidade, o faraó, bem o sabiam os egípcios,
nem sempre era suave. Em resposta à pergunta de Alexandre sobre o segredo da
sua origem divina, os sacerdotes de Amon tinham apontado nele um faraó divino,
sagrando-o como tal no templo de Ptah.
Por conseguinte,
os seus descendentes ocupariam o trono das Duas Terras, do Alto e do Baixo
Egipto, ainda que Ptolomeu Sóter clamasse que o Egipto lhe pertencia, pois
conquistara-o pela espada... As
honras fúnebres a prestar à defunta rainha Arsínoe incluiriam um
sumptuoso cortejo, tão ao gosto alexandrino. Os sacerdotes de Anúbis figurariam à frente, desfilando entre a
multidão que se aglomerava nas partes laterais da avenida, o passo lento,
devido ao peso das máscaras, insistentemente marcado pela cadência dos tambores.
A rematar haveria um coro de
carpideiras entoando um estranho canto do outro mundo, feito de murmúrios em
escala ascendente e descendente, sem palavras, reproduzindo o som de certas
vogais. As mãos das dançarinas, ondulando em uníssono com o som
produzido, reflectindo luz e sombra, criariam uma atmosfera hipnótica reforçada
pelo som dos sistros das sacerdotisas de Isis, agitados por estas a intervalos
regulares». In Maria Lucília Meleiro, A Rosa de Alexandria, tradução de João
Lourenço, Grandes Narrativas nº 192, Editorial Presença, Lisboa, 2002, ISBN 972-232-961-8.
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