«Um não sei quê
que nasce não sei onde, vem não sei como e dói não sei porquê». In
Luís de Camões
«(…) Reprovavam
tudo, a tua alegria, a tua beleza, o teu desassombro, a tua simpatia, o teu
humor. Tenho que pedir desculpa ao senhor doutor Pedro por lhe ter trazido
aquela descarada para o ajudar quando faleceu a minha mãe qual descarada pois,
a, essa Inês Castro das relações públicas que dizem que é uma doida, nem sei
como o paizinho não a despede. Está no período de experiência, nem tem que lhe
dar indemnização não sei de que é que está a falar dona Zilda e por favor apresse-me
o dossier dos lacticínios porque
tenho uma reunião no exterior. A dona Zilda está feliz porque já deu a sua
opinião, aliviou a consciência, mais tarde silvará, ele que não diga que eu não
o avisei. No bar da firma encontro o Afonso Madeira, economista, um dos poucos
aqui dentro com quem mantenho uma relação mais próxima. Posso dizer que somos
amigos, enfim, já tomámos muitos copos juntos, ele janta às vezes lá em casa e
já me apresentou uma ou outra namorada. Para disfarçar, diz a Constança, pois
decidiu que o Afonso, lá porque é solteiro aos quarenta anos, tem que ser
homossexual. Mas não é. Tem, isso sim, muita experiência de relações com
mulheres e inerentes complicações.
Andas a arranjar
lenha para te queimares, diz ele, mas como eu te compreendo. A mulher é
deslumbrante achas bom já vi que é mais sério do que eu pensava, se te fechas
ao assunto isso é um péssimo sinal. A Constança já sabe? E o que é que tu achas
que a Constança deve saber? Que eu saio às vezes com uma colega de escritório?
Que não existe entre nós essa coisa horrível, assustadora, demolidora de
matrimónios que dá pelo nome de cama e que estás a brincar não estou a brincar
mas é irrelevante, visto que já todos, incluindo tu, acreditam numa paixão
tórrida, muito física, muito sensual e acham desenxabida uma relação platónica
por mais poética que ela seja poética ou outra coisa qualquer que lhe queiras
chamar. Deixa lá. Não te preocupes que não é desta que o mundo sai fora do eixo
e cá dentro Inês, Inês, Inês, se eles soubessem que és virgem, que mo
disseste com toda a altivez do teu sorriso, como quem expõe a sua melhor arma,
o seu mais belo enfeite, o seu mais valioso adereço, Pedro, eu sou virgem, mas
haverá uma noite, não sei quando nem onde nem como, em que seremos um.
Era na primeira
luz da alvorada, lembro-me bem, saltei por cima do corpo adormecido do meu
escudeiro para ir encontrar-te no claro-escuro da barbacã onde o sol nascente
te punha ora na luz ora na sombra das ameias consoante, iluminada, te viravas à
paisagem ou sombria rodavas para mim o teu perfil. Sabei que sou donzela e para
vós guardarei a minha virgindade ou com ela morrerei. Uma jura demasiado pesada
para mulher tão frágil ou talvez essa fosse a tua força. Porque eu ajoelhei e
inexplicavelmente comovido te beijei, um por um, todos os dedos, esguios,
branquíssimos, sem anéis. Foi nessa luz da manhã que me contaste que a princesa
dona Constança te convidara para madrinha do nosso filho Luís, acabado de
nascer, o que significava ficarmos, eu e tu, unidos por laços familiares que
tornariam incestuosa qualquer relação física. Tal era a iminência de catástrofe
que se desprendia dos nossos propósitos que julgávamos discretos, dos nossos
olhares que supúnhamos imperceptíveis. A princesa sabia.
E o meu filho
nasceu para morrer pouco depois e para sempre te sentiste culpada porque não
pronunciaste em voz alta os votos que competiam à madrinha, apenas fingiste que
os balbuciavas, num ardil ingénuo para te não vinculares ao parentesco, e
depois acreditaste que o infante não ficara baptizado e morrera pagão. Mas isso
foi apenas o princípio. Houve sempre um princípio, embora parecesse que tudo
principiara muito antes, num mundo ainda por acontecer, quando o tempo ainda
dormia, ou era tão vagaroso como o feto de um outro tempo por nascer. Desde que
me mudaram a medicação, algo de estranho começou a acontecer na minha memória.
Como se me lembrasse de um tempo a que por comodidade chamarei futuro, mas que
não é futuro, é tão presente como aquele em que conheço Inês no escritório do meu
pai ou aquele outro em que sou rei e mando matar os algozes da minha amada ou
este aqui em que às vezes me fecham num compartimento de segurança para que não
destrua o hospital. É como se tudo fosse agora e se confundisse dentro de mim,
e só consigo distinguir as situações paralelas porque se passam em velocidades
diferentes. É sabido que na infância o tempo não passa, na adolescência
demora-se, na idade adulta corre, na velhice precipita-se». In
Rosa Lobato Faria, A Trança de Inês, Círculo de Leitores, cortesia de ASA
Editores, 2005, ISBN 978-989-660-034-1.
Cortesia
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