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Também me lembro da casa da minha bisavó, em Cacilhas, isto é, lembro-me duma
casa onde havia sempre muita gente, onde não me obrigavam a beber café com
leite, onde ninguém me ralhava nem me punha de castigo- O resto, os pormenores,
o tempo se encarregou de mo revelar, à medida que íamos crescendo, os meus
irmãos e eu. Era uma casa pombalina, cor-de-rosa. Nem pequena nem enorme, tinha
janelas de sacada com grades pintadas de verde e muitos vasos de sardinheiras
nas varandas. A casa de jantar e a sala, ambas muito grandes, tinham pinturas a
fresco nas paredes, cenas de caça na primeira, anjinhos, instrumentos musicais
e grinaldas de flores na segunda. Os quartos, excepto o da minha bisavó e o da
tia Emiliana, eram alcovas com portas de vidrinhos que davam para a sala e para
a casa de jantar. O sótão, enorme, tinha um delicioso cheiro a pó e a bafio.
Por uma grande escada de pedra chegávamos aos aposentos da tia Emiliana, Que se
compunham de sala, quarto de dormir e quarto de vestir e lavagens. O quarto de
dormir tinha uma janela que dava para o Tejo, podendo ver, quando estava
deitada, o vaivém das fragatas no rio.
No
pátio lajeado da cozinha havia outra escada de pedra, toda enredada numa
trepadeira que dava umas flores esverdeadas chamadas martírios. A quinta que me
parecia muito grande era na realidade pequena e bastante mal tratada por falta
de água e por já não haver, nessa altura, hortelão nem jardineiro. Ainda assim
tinha algumas árvores de fruto, pereiras e macieiras, alguns pés de uva
moscatel, uma enorme amoreira e duas figueiras que davam uns figos pequenos mas
muito doces. E havia ainda o mirante, a praia da Margueira e o poço onde, dizia
a cozinheira Guilhermina, viviam lagartos e lacraus. A tarde cai lentamente, o
Sol começa a diluir-se no horizonte, a Ria é agora um espelho que recolhe os
últimos lumes do poente, um espelho que umas vezes parece azul, outras vezes
cinzento, outras de prata velha. Estou a ver a água parada, a olhar aquelas
aves brancas duma brancura de cisne, que se perfilam no horizonte a tentar
surpreender a ondulação dos peixes. Estou aqui na ilha de Faro, à beira da Ria,
mas que fio de Ariana me levou para bem longe, para a casa da minha infância? A
doçura da tarde? O voo das gaivotas? Os reflexos dos últimos raios de sol na
água imóvel? De repente compreendi: não era o lento subir da maré que eu
captava, nem o sussurro da água na areia, mas o longínquo marulhar do Tejo na
pequena praia da Margueira.
Os
dias aqui decorrem serenos, mas cheios de acontecientos importantes. Esta manhã
reparei que algumas figueiras tinham pequenos tufos de folhas tenras nas
extremidades dos braços descarnados, e tanto bastou para que deixasse de acreditar
nas penas eternas. Deus é infinitamente misericordioso, e Judas arrependeu-se:
Não há árvores malditas. Esta noite o mar rompeu os diques, desconjuntou os barcos,
derrubou as barracas dos pescadores e arremessou à praia uma pequena Cyprea do
Mediterrâneo, ainda viva, e uma gaivota do Atlântico já morta. O fragor do mar
parece o rugido dum leão que fosse capaz de rugir a noite inteira. Não sei se é
um bem, se um mal esta corrida para o espaço, mas não posso esquecer os olhos
angustiados daquela criança que me perguntou ao ver no Cinema um foguetão apontado
para o céu: vão matar os anjos? Sim, confesso: estou de mau humor por causa da
Lua. A Lua sempre foi dos Poetas, não esse miserável planeta que os sábios
inventaram, mas a Lua que eu amo, ninhada de luar, algo de branco puro, inacessível,
algo para cantar quando o silêncio, a noite, a solidão são lágrimas de sangue
que o Poeta se recusa a chorar». In Fernanda de Castro, Ao Fim da Memória
(1906-1939), Editorial Verbo, Lisboa, 1988, Depósito legal nº 21636.
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