«(…) Sentiu-se
agoniada. Pensou em vomitar para o balde por baixo do lavatório, fosse qual
fosse o fantasma que viesse despejá-lo. A sua roupa interior desaparecera. Por
baixo da camisa de noite cor-de-rosa tinha uma calçola pelo joelho, com
um folho, do mesmo tecido e da mesma cor. Na cadeira, uma camisa de dia, de
alças, e um corpete que não chegava a ser espartilho. Vestiu-se, isto é, na sua
ideia mascarou-se, com o vestido de cassa. Olhou-se bem no espelho. Só o rosto
era o mesmo. Não tinha verniz nas unhas, agora cortadas rentes. As sobrancelhas
não estavam arranjadas e algumas rugas, que já espreitavam ao canto dos olhos,
tinham desaparecido. Mas eram os mesmos olhos azuis, sim, a mesma boca cheia,
as mesmas maçãs do rosto um pouco salientes. O que faço agora?, pensou, já
disposta, por não ter alternativa, a entrar no jogo. Confirmou o que já
suspeitava: a mala de rodinhas com o resto das suas coisas, não estava lá. O
candeeiro da mesinha-de-cabeceira também não. Era, no seu conjunto, uma partida
muitíssimo bem pregada. Mas não lhe parecia que aquelas senhoras amáveis que a
tinham recebido fossem capazes de uma loucura destas. Foi à janela e viu o
mesmo muro de pedra que lhe parecera ver na véspera e, para além dele, árvores
de fruto e vinha a perder de vista. Ninguém a tinha teletransportado para um
castelo na Escócia. Foi quando bateram à porta. Uma voz grave de mulher com
forte pronúncia do norte, insistiu: menina Margarida, abra a porta! Que
novidade é esta de se trancar? É a Lucinda, trago-lhe o pequeno-almoço. Vá lá,
está a arrefecer!
Abriu. A Lucinda
entrou, fardada de cinzento até aos pés, crista, punhos e avental branco, cujo
laço engomado deixava cair duas pontas aladas até aos calcanhares. Bom-dia,
menina. Pensei que estivesse doente. E faça favor de não se trancar, porque se
lhe dá o ataque a gente não lhe pode acudir. Pousou a bandeja de prata na
mesinha ali posta, certamente para esse fim, e de onde o tabuleiro da véspera,
o chá, os bolinhos caseiros haviam desaparecido. Agora tinha uma almoçadeira de
porcelana com chocolate quente, pãezinhos onde a manteiga se derretia, duas
taças com compotas diferentes, e uma grande fatia do que parecia ser pão-de-ló.
Vá, toca a comer. A menina hoje não me parece lá muito boa. E é bom que esteja,
porque vem o tal amigo do paizinho que quer escolher noiva. As manas já estão
prontas. A menina Mariana já anda aos pulos e a menina Madalena está a ajudar a
fazer um bolo para o chá. Despache-se Margaridinha, pela sua saúde, antes que a
mãezinha venha cá ralhar. Já mando a Rosa arrumar o quarto. Quer que a penteie?
Ou vai andar com essa gaforina a receber as visitas?
Quero, disse
Margarida, convencida de que aquilo era um filme onde teria de inventar as suas
próprias deixas. Faz-me uma trança. Qual trança, qual carapuça. Vou pôr-lhe um
laço de cetim amarelo que fica bem com os cabelos castanhos, tão lindos, que a
menina tem. Puxo estes aqui para a frente, bem alisadinhos com o pente e
prendo-os cá atrás com a fita. Amarelo, com o branco do vestido, fica bonito.
Lucinda, que dia é hoje? Perguntou, enquanto a criada procurava numa gaveta
cheia de fitas, ganchos e plumas. Que dia é hoje? Ora então a menina não sabe?
É o quinze de Setembro. E está um calor que parece Agosto. Quem diria que daqui
a nada é Outono. De que ano, Lucinda? Está a fazer pouco de mim? Só para ver se
sabes. É o..., pois..., deixe cá ver. 1908.
É isso. Não ando sempre a pensar que ano é, mas sei, pois. É isso. É o 1908. Foi este ano que mataram o Rei. Então
Margarida percebeu que, como nos contos de fadas, tinha dormido cem anos, e
viajado, durante o sono, no sentido inverso do tempo.
Continua com o
telemóvel desligado, disse outra vez o Pedro. Eu sei como ela é: desligou-o
ontem para a palestra e nunca mais se lembrou de que eu combinei acordá-la. Deixa-a
dormir sossegada. É sábado. Talvez tenha decidido passar lá o fim-de-semana. Guilherme
é um homem pragmático, sem as complicações sentimentais do amigo.
Encontraram-se para um café a meio da manhã e ele esperava passar uma hora
descontraído, quando afinal lhe apareceu um Pedro comido pelos nervos. Não
estás a ver, Guilherme. O combinado era a Margarida vir para baixo hoje de manhã,
ainda a tempo de irmos passar o fim-de-semana a qualquer lado. Não percebo esse
vosso namoro. Não é bem namoro. É mais uma amizade colorida. Mais uma razão
para a deixares dormir. Pedro inibia-se de confessar aquele ciúme que o
devorava, que lhe punha traições na imaginação. O que andaria Margarida a
fazer?
Teria conhecido
alguém? Iria demorar-se no Norte só para se divertir à sua custa? Ou, pior que
isso, nem sequer pensava nele? Era o mais provável. Colegas de profissão, ambos
professores de Matemática na mesma escola secundária, amava-a desde a
faculdade. Andaram juntos durante alguns meses, depois ela acabou porque
decidiu que não queria compromissos, depois retomaram uma, duas vezes, e agora
a situação, com a qual ele tentava conformar-se, era a de amigos que dormiam
juntos uma vez por outra. Pedro soubera fazer-se amigo da família: do pai, um
homem do mundo, formado em Direito, culto e rico; da mãe, uma mulher
elegantíssima, só simpatia e charme,
com quem Margarida se parecia; das irmãs, Mariana e Madalena, ainda estudantes,
uma de Letras, outra de Informática. A tendência de Margarida e Madalena para
os números parecia vir-lhes da mãe Matilde, que deixara o curso de Engenharia
para casar com Salvador.
Pedro
era da casa. Começara por dar explicações à Madalena, depois habituou-se a
acompanhar Matilde a exposições de pintura, palestras e concertos para os quais
Salvador não tinha paciência. Todos viam com bons olhos a hipótese de um
casamento, mas Matilde, que conhecia a filha, não acreditava que isso viesse a
acontecer. Margarida era demasiado independente e senhora da sua vida para
casar sem estar perdidamente apaixonada. E não estava. Tinha um apartamento
próximo da casa dos pais e vinha muitas vezes jantar, o que permitia a Matilde
estar a par do dia-a-dia da filha mais velha e, ocasionalmente, dos seus
sentimentos. Como daquela vez em que: mãe não conte comigo por uns dias. Vou
viajar. Ai sim? Em trabalho? Não. Com uma pessoa. Ah». In Rosa Lobato Faria, As Esquinas do Tempo, Porto Editora, colecção Marca de Água, 2008, 2011, ISBN:
978-972-0-04181-4.
Cortesia
PEditora/JDACT