sábado, 10 de outubro de 2015

Meninas. Maria Teresa Horta. «Arrepio-me ao não encontrar motivo para a sensação de falta que experimento, quando ao tentares olvidar-me te afastas, maltratando-me, pois sem a tua atenção adoeço, encolho-me…»

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«O monstro morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era sozinha». In Clarice Lispector

Lilith
«A cortina volta a tapar aquilo que imagino ser claridade vacilante. Aquietas-te na obscuridade, palmas abertas sobre a almofada a fazeres ninho sob a lisura do rosto. Suspeitosa, recuo o que posso e fico atenta ao bater compassado do teu coração; mas logo me distraio a misturar a minha respiração com a tua, alinhando o coral dos nossos lábios: quatro linhas perfeitas e unas. Com a nudez dos corpos a formarem um único. Tacteio e vou folheando o espaço à minha volta. Creio começar a distinguir os sinais tépidos e pouco distintos que envias, na tentativa de me dares a conhecer a tua beleza de cisne, quase infantil ainda. Perplexa, desenlaço-me das tuas coxas e inicio com cuidado um novo gesto vagaroso, assim buscando aproximar-me mais de ti pelo avesso, tecidos luminosos a resistirem aos meus dedos numa descoberta intranquila. Viras-te de costas com lentidão indiferente, obrigando-me à imobilidade, emparedada pelos teus músculos, entre tendões, artérias e ligamentos; os ossos das ilhargas a demarcarem-te o ventre, nos quais desatenta me mago-o e me detenho, sufocando, arfando um tudo-nada. Paro, engulo os humores espessos que se formaram na minha garganta, e desloco-me com a intenção de copiar as posições que tomas na cama; e desse modo chego à tua beira, pelo sítio onde se inicia a subida até à tua cintura agora inexistente. Numa avidez febril. Consciente de que o teu alheamento me repele, mas que o teu silêncio e a tua imobilidade me autorizam. Ponho-me então de bruços e alongo-me, o que me permite detectar a tepidez da pele da tua barriga, degustando-te os densos sabores estriados de salva e de baunilha, e os mesclados odores a deserto e a gardénia das águas tamisadas onde flutuo, numa ondulação de embuste e mistério a contribuírem para te adivinhar: petulante e cruel, ardilosa e perturbadora. Suspendo os movimentos que me denunciam e mergulho no plasma madrepérola, em leitosas marés de bruma, ciente da fibrosidade lacada dos teus tornozelos e pulsos quebradiços, que anseio por tocar. Surpresa, sinto chegar a dor: seta afiada, ácida, laminada, a lacerar-me as articulações dos braços, idênticos a delgados juncos, enroscados em torno do lugar onde fantasio situar-se a curvatura das tuas ancas. Iço-me, relutante, pois deixei de escutar-te os gemidos, não obstante continuar a saborear-te o áspero sal das lágrimas, que me enchem a boca com o sabor ázimo da vertigem. Por segundos aquieto-me interdita, até julgar reconhecer ao longe o azul transparente do cintilante cristal dos teus olhos. E apesar das sombras, retrocedo no sentido inverso daquele para onde, sem dar por isso, começo a ser empurrada, mansa na tentativa de ganhar alento, nesse devaneio regressando ao ponto de partida. Supondo-me segura, permito-me dar conta do equinócio do teu sangue, do qual tenho uma dependente sede de vampira. Bebo-o gulosa, à mistura com as imagens dos sonhos antes de estes te inundarem, precipitando o pranto; sei que choras a dormir e, cautelosa deslizo, cada uma das unhas resvalando nas delicadas hastes dos teus nervos. Desapiedada, dá-me prazer que estremeças, obstinadamente ignorando a culpa. Arrepio-me ao não encontrar motivo para a sensação de falta que experimento, quando ao tentares olvidar-me te afastas, maltratando-me, pois sem a tua atenção adoeço, murcho, seco, encolho-me. Rastejo primeiro e em seguida imobilizo-me, temendo que me escapes, a privares-me assim de mim própria, dado uma coisa levar à outra nesta história de amor e morte, que jamais terá um final feliz; talvez por isso excedo-me ao reinventá-la cada vez que a conto, agudizando os laços dos teus mênstruos escarlates, a seda dos teus vestidos, o adamascado cetim da tua nuca, o perfume orvalhado dos teus ombros de porcelana, o almíscar morno das tuas axilas, os nós de rubis dados na ondulação frisada dos teus cabelos louros, em contraste absurdo com os meus, nocturnos e lisos, que obrigarás às tranças que detestarei até ao termo da infância desaparecida demasiado cedo, porque a tua loucura imponderável nunca será tolerante nem gentil comigo». In Maria Teresa Horta, Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT