Quem
sou? 24 de Março de 1897
«(…) O abuso de cerveja torna-os incapazes
de ter a mínima ideia da sua vulgaridade, mas o superlativo dessa vulgaridade é
que não se envergonham de ser alemães. Levaram a sério um monge glutão e
luxurioso como Lutero (pode-se desposar uma monja?), só porque arruinou
a Bíblia traduzindo-a para a língua deles. Alguém não disse que abusaram dos
dois grandes narcóticos europeus, o
álcool e o cristianismo? Consideram-se profundos porque sua língua é vaga, não tem a clareza da francesa e nunca
diz exactamente o que deveria, de modo que nenhum alemão sabe jamais o que
queria dizer, e toma essa incerteza por profundidade. Com os alemães é como com
as mulheres, nunca se chega ao fundo. Desgraçadamente, essa língua inexpressiva,
com uns verbos que, ao ler, temos que procurar ansiosamente com os olhos,
porque nunca estão onde deveriam estar, meu avô me obrigou a aprendê-la na
juventude, o que não é de espantar, pró-austríaco como ele era. E assim odiei
essa língua, tanto quanto odiei o jesuíta que vinha me ensinar a golpes de
baqueta nos dedos. Desde quando aquele Gobineau escreveu sobre a
desigualdade das raças, parece que, se alguém fala mal de outro povo, é porque
considera superior o próprio. Eu não tenho preconceitos. Desde que me tornei
francês (e já o era pela metade, pelo lado materno), compreendi o quanto meus
novos compatriotas são preguiçosos, trapaceiros, rancorosos, ciumentos,
orgulhosos além de todos os limites, a ponto de pensarem que quem não é francês
é um selvagem, e incapazes de aceitar críticas. Percebi, porém, que para induzir um francês a reconhecer uma tara da
sua corja basta lhe falar mal de outro povo, por exemplo nós, poloneses, temos esse ou aquele outro defeito. E, como não
querem ficar atrás de ninguém, nem sequer no mal, eles logo reagem com oh, não, aqui na França somos piores e
passam a difamar os franceses até se darem conta de que você os apanhou na
armadilha. Não amam os seus semelhantes, nem quando tiram vantagem deles.
Ninguém é tão mal-educado como um
taberneiro francês, que parece odiar os fregueses (e talvez seja verdade) e
desejar que não estivessem ali (e é mentira, porque o francês é avidíssimo). Ils grognent toujours. Experimentem
perguntar-lhes alguma coisa: sais pas,
moi, e protraem os lábios como se peidassem. São maus. Matam por tédio. É o
único povo que durante vários anos manteve os seus cidadãos ocupados em se
cortarem reciprocamente a cabeça, e a sorte foi que Napoleão desviou-lhes a
raiva para os de outra raça, enfileirando-os para destruir a Europa. Orgulham-se
de ter um Estado que afirmam poderoso, mas passam o tempo tentando derrubá-lo: ninguém é tão eficiente como o francês em
erguer barricadas por qualquer razão e a qualquer sussurro do vento, muitas vezes
sem sequer saber o porquê, fazendo-se arrastar na rua pela pior ralé. O francês
não sabe bem o que quer, excepto que sabe à perfeição que não quer aquilo que
tem. E, para dizer isso, não sabe fazer mais do que cantar canções. Acham que o
mundo inteiro fala francês. Aconteceu algumas décadas atrás com aquele Lucas,
homem de génio, 30 mil documentos autógrafos falsos, em papel antigo roubado
mediante o corte das folhas de guarda de velhos livros na Bibliothèque Nationale, imitando as várias caligrafias, embora não
tão bem como eu saberia fazer... Vendeu não sei quantos a caríssimo preço
àquele imbecil de Chasles (grande matemático, dizem, e membro da Academia das
Ciências, mas grande paspalhão). E não só ele, mas muitos de seus colegas académicos
tomaram por certo que Calígula, Cleópatra ou Júlio César tinham escrito as suas
cartas em francês, e que em francês se correspondiam Pascal, Newton e
Galileu, quando até as criancinhas sabem que os eruditos daqueles séculos se escreviam em latim.
Os doutos franceses não faziam ideia de
que outros povos falavam de modo diferente do francês. Além disso, as cartas
falsas diziam que Pascal havia descoberto a gravitação universal vinte
anos antes de Newton, e isso bastava para deslumbrar aqueles sorbonistas
devorados pela empáfia nacional. Talvez a ignorância seja efeito da sua avareza,
o vício nacional, que eles tomam por virtude e chamam de parcimónia. Somente
nesse país foi possível idealizar uma comédia inteira em torno de um avarento.
Sem falar do pai Grandet. Vê-se a avareza pelos seus apartamentos empoeirados,
pela forração nunca refeita, pelas banheiras que remontam aos ancestrais, pelas
escadas em caracol, de madeira instável, para aproveitar sovinamente o pouco
espaço. Enxertem, como se faz com as plantas, um francês com um judeu
(talvez de origem alemã) e terão aquilo que temos, a Terceira República... Se
me fiz francês, foi porque não podia suportar ser italiano. Enquanto piemontês
(por nascimento), eu sentia ser apenas a caricatura de um gaulês, mas de ideias
mais restritas. Os piemonteses, toda a novidade
os crispa, o inesperado os aterroriza; para fazê-los moverem-se até às Duas
Sicílias (mas entre os garibaldinos havia pouquíssimos piemonteses) foram
necessários dois lígures, um exaltado como Garibaldi e um azarento como Mazzini.
E não falemos do que descobri quando fui mandado a Palermo (quando foi? Devo reconstituir). Só aquele vaidoso do Dumas
amava aqueles povos, talvez porque o adulavam mais do que o faziam os
franceses, que afinal sempre o consideraram um mestiço». In
Umberto Eco, O Cemitério de Praga, 2010, tradução de Joana Angélica Melo, ePUBr,
Biblioteca Digital Brasileira, Editora Record, Rio de Janeiro, 2011, ISBN
978-850-109-284-7.
Cortesia de ERecord/JDACT