De acordo com o original
«(…) Por um desfastio, o outro concordou. Mas lá lhe parecia historia
que o burro tomasse para a aldeia... Vinha de tão má vontade, que até lhe custara
tiral-o de casa. Olhe que vae pr'os Casaes! Digo-lhe então que vae pr’os Casaes...,affirmou.
Melhor p’ra você. Mas nós veremos p’ra onde vae. Você está pelo dito?, quiz
saber o Thomé. Sim senhor, estou! Pois que duvida tem que estou?, disse-lhe o
outro n’um rompante. Olhe: uma, duas, tres; ás tres largo-lhe a arreata. Ia já
a abrir a bocca para dizer, uma! Alto!,
fez o Thomé. Espere lá um pouco. Primeiro hei-de fazer duas festas ao animal. E
pôz-se a bater-lhe na anca, no pescoço, no peito, demorando-se um pouco a
fital-o de frente, para que o animal o conhecesse. Sultão!, gritou-lhe de repente. Eh! Sultão! O burro estremeceu... Dir-se-hia que no fundo da sua
memoria, a lembrança porventura adormecida d’aquelle nome despertara
subitamente... Eh! Eh!, riu-se muito satisfeito o lavrador. O burro, agora,
vira-se p’ra ali. Isso. Nem é p’r’os Casaes nem p’r’o logar. Assim. Eh! Eh! E
afastou-se para o lado, aguardando.
Uma anciedade dominava
n’aquelle momento os do grupo; o Thomé pôz-se a roer as unhas, nervoso... Então
você porque espera? perguntou. Ouviu-se logo a voz do outro, dizendo: Á uma!...
O Thomé sentiu um calafrio; sapateava nervoso, cheio de medo, o olhar de esguelha,
e entre os dentes ferrados o pollegar da mão direita..., ás duas! Ih!, c’um
raio!..., dizia baixo o Thomé. E sem querer, os olhos cerraram-se-lhe com
força. ...ás tres! Foi então um barulho de palmas, um berreiro atroador de
vivas e gargalhadas! O Thomé vencera: corriam todos a abraçal-o, affirmando que
o caso era para foguetes. Viva o sr. Thomé! Viva o Sultão! Aquillo é que é burro! Aquillo é que é amigo, hão-de vocês
dizer!, emendava o Thomé a rir. Tenho-os com dois pés, que não valem metade...
Oh!, sr. Thomé!, protestavam
alguns. Isto não é com vocês, mas é como quem se confessa... Está visto que não
é com vocês. E ria, ria como um perdido, emquanto, estrada fóra, o Sultão corria que voava, cauda no ar,
corda de rastos, perdendo-se por fim lá ao fundo, na poeirada immensa da
estrada, como que nimbado n’um resplendor de apotheose. E na peugada do burro,
esbaforido e como doido, seguia agora o lavrador, após o fraternal abraço,
pregado no dos Casaes... Quando o Thomé chegou a casa, offegante, a suar, cheio
de gestos e de palavras entrecortadas de riso, já o Sultão, relinchando, pateava á porta do antigo cortelho, n’uma
grande impaciencia, um rap-rap continuo
na soleira. Venham vêr! Venham cá vêr!, berrava o Thomé para a vizinhança. Ó Antonio!
Ó compadre! Ó Maria Engracia!
Ás janellas assomava
gente, perguntando se era fogo. Qual fogo, nem qual carapuça! É o Sultão, mas é! Este inimigo! Ó Josepha!
Josepha!, cá temos o burro, este demonio. Assoma. Ora imaginem agora os
senhores, se podem, a effusão do lavrador. Abraços? E até beijos. Aquillo era
um thesoiro perdido que reaparecia alfim. A mulher, do alto da escada,
benzia-se, perguntando se o seu homem teria endoidecido... Palavra de rei, Sultão, palavra de rei! Anda d’ahi pelos
saccos. São só dois. Ó Josepha! Ouves?, p’ra cá esse garrafão que está ao pé da
arca, avia-te. A caneca tambem, ouviste? Essa das riscas vermelhas, a maior. E
atirando as mãos ambas para a albarda, montou muito regalado, de um pulo. Ah! A
senhora Josepha assomava, ajoujada com o enorme garrafão. Anda, mulher, põe
aqui deante de mim. Avia-te. Ia a boa da senhora Josepha arriscar uma
observação, um conselho, qualquer coisa de tomo... Adeus, minhas encommendas!
Não me fanfes, mulher, não me fanfes. Põe aqui, que mando eu, avia-te. Assim.
Está bem. Nome do Padre... Então que lhe queres? Deu-me agora p’r’aqui! Nome do
Padre, nome do Filho... A caneca! Venha de lá agora a caneca! ...nome do
Espirito Santo! Passa bem, ó mulher, concluiu ás gargalhadas, entre as
gargalhadas dos demais. Ouves? Quando o Manoel vier dos ninhos, esse maroto,
manda-m’o ás eiras. A trote, Sultão!
Eh! valente! E lá parte, veloz como uma setta. Já de longe volta-se do repente:
Josepha!, ó Josepha!, n’esse alguidar do meio umas sopas de vinho p’r’o Sultão, ouviste? No do meio. O grande é
muito grande, e esse pequeno não presta. Ouves?,mas quer-se coisa que farte,
bem entendido. E de novo despediu como uma flecha, abraçado ao garrafão.
Arreata para a direita, arreata para a esquerda, pernas a dar a dar, elle lá
vae n’uma corrida, sumido n’uma onda de poeira, até chegar ás primeiras mêdas. Vinho,
rapaziada! Ó Maria do Carmo, toma lá uma pinga, mulher! Lá por andarmos de mal
ha 15 annos isso acabou-se! E o Thomé atravessou a eira sempre a cavallo no Sultão, caneca de vinho para a direita,
caneca de vinho para a esquerda». In Trindade Coelho, Os Meus Amores, Contos e
Baladas, Projecto Gutenberg, ISSO 88589-1, 2006, produção de Carla Ramos e
Ricardo Diogo e edição de Rita Farinha, Os Meus Amores, 2ª edição, Lisboa,
Livraria de António Pereira, 1894.
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