«(…)
Passaram meses e um dia o marido foi-se de vez com a amiga para outra terra e
nesse mesmo dia o Sol Nascente entrou pela janela e foi de livre vontade
meter-se na gaiola que lá continuava de porta aberta pendurada na trave, a
mulher que estava triste alegrou-se e ele cantou para ela até ao fim dos seus
dias. Perguntaste-me tu, Márito e tu, Diamantina, porque é que eu, que tanto
prezo a liberdade, sou capaz de meter canários em gaiolas. Pois eu entendo que,
já que eles são das poucas avezinhas que cantam em cativeiro, certamente o
Senhor as criou para alegrar o coração das mulheres solitárias. Tiana, na
juventude, tinha-se chamado Ana. Mas o seu temperamento maternal grangeara-lhe
muito cedo o grau de tia e as duas palavras, fossilizadas juntas, tinham
formado Tiana, a ponto de as criadas novas a tratarem por dona Tiana. Diamantina
sentou-se a tomar chá e pediu à Júlia que a chamasse. Tiana largou o tacho de
cobre onde luzia a marmelada, tirou o avental de quadrados que atara à cintura,
limpou-lhe as mãos e veio à salinha. A menina chamou? Tiana. Senta-te aí e toma
chá comigo. Agora és a minha única amiga. Margarida Narciso, minha mãe, nasceu
numa família muito pobre. O pai era ganhão, a mãe remendava a roupa de outros
pobres, que lhe pagavam com um enchido, um púcaro de azeite, um pão acabado de
cozer, uma mão de azeitonas. Gente calada, fechada pela miséria, os meus avós
não conheceram nem deram a conhecer a ternura e Margarida, a mais nova de três
e única rapariga, cresceu a ajudar a mãe, a privar-se com ela dos melhores
bocados, a dividir com ela os mais duros serviços. Aos quinze anos
puseram-na a servir na casa mais rica de Castelo de Vide, o doutor Bento Proença e a dona Joaninha que
tinham pessoal para dar e vender: cozinheira, ajudanta, duas de fora, uma da
mesa, uma de meninos quando o Simãozinho era pequeno, uma na costura,
jardineiro e chofer.
Margarida
começou de ajudanta de cozinheira e dois anos depois passou para os quartos,
quando a Adelina casou. A criada de mesa chamava-se Joana, mas culpada do
atrevimento de ter o nome da patroa, passou a chamar-se Dália, que era o nome
da anterior, nem a senhora estava disposta a habituar-se com outro. Margarida
costumava ajudá-la a servir jantares maiores, almoços de domingo, banquetes de
visitas. Logo da primeira vez o doutor Proença pôs o olho nela, era um jantar
de vinte pessoas, sussurrou à Dália-Joana que lhe servia o Redondo tinto, a tua
colega quem é? É a Margarida dos quartos, senhor doutor, pois diz-lhe que não
segure a travessa do lombo pelas bordas, já sabes que a dona Joaninha é
distraída, a mão é por baixo e se queimar queimou. O senhor doutor já reparou
em ti, estás feita, temos de ir todas ao castigo, a Dália foi-se embora por
causa disso, eu até agora escapei porque tenho os dentes saídos graças a Deus,
mas qualquer dia apanha-me no escuro e esquece-se, agora tu, bonita como és,
não tens por onde fugir, há-de fazer serão e mandar-te ao escritório com uma
fatia de bolo de mel e uma garrafa de peitoral Ferreirinha.
Estão
a tocar para os doces, agora o que é que eu faço? Serves a encharcada e eu os
papos de anjo e seja o que Deus quiser. Nesse dia não aconteceu nada. Quase
nada. Com vinte pessoas à mesa, o doutor Proença, um senhor tão fino, tinha que
ter maneiras, só quando a Margarida lhe trocou o prato da fruta que estava todo
lambuzado pela calda do doce, ele apalpou-lhe a coxa pelo lado de dentro, bem
cá em cima, onde a meia de algodão enrolada na liga deixava aquele palminho de
carne branca. Isto imaginou ele, porque a farda azul escura era de sarja e
deixava pouco campo de manobra ao tacto. Margarida passou a andar com o credo
na boca, escondia-se à espera que ele saísse, só lhe arrumava o quarto quando
tinha a certeza que ele ia longe no Studebaker
ou no alazão, se ele pedia uma bebida ou um café ao escritório ia lá sempre a
Dália, afinal ela é que era da mesa, à Margarida só competiam limpezas e
arrumações. Mas o doutor Proença era de ideias fixas e um dia, estranhando
nunca mais ver a Margarida, disse à mulher, Ó Joana, porque é que nós temos uma
criada de mesa com os dentes de fora? Porque sabe servir bem à mesa, não
entorna nada, não é escaldadiça, não troca os copos, é silenciosa e faz bom
café de balão. Mas aqueles dentes não são agradáveis de ver, estou sempre à
espera que ela dê uma dentada na minha perna de borrego.
Ora,
Bento! Sabe como é difícil treinar este pessoal! A outra Dália, quando estava
no ponto, foi-se embora, nunca percebi porquê, umas ingratas, é o que elas são.
Agora não me faça ensinar outra, que eu não tenho cabeça para tudo. Tu não tens
mas é cabeça para nada, mas está bem. Manda-a lavar aquelas favolas antes de
pôr o avental de renda e passar pó Avelar para branquear o esmalte. Mas isso
faz cair os dentes, estraga-os todos! E eu ralado. Esfrega-os bem esfregados,
estica a beiça por cima deles o mais que puder e quando eu precisar de qualquer
coisa no escritório mandem-me outra que consiga fechar a boca sem ser preciso
pendurar-lhe um peso na beiçola. Quando a Joana-Dália lhe apareceu no
escritório com a bandeja de prata do café e a garrafa do Napoleão, a Senhora
não te disse nada? De quê, senhor doutor? Leva isso para trás e manda-me outra
depressa, antes que o café esfrie e o balão do conhaque arrefeça. Mas porquê,
senhor doutor? Está tudo com o senhor dou... Xô; mula! Arreda, cabresto! E a
Joana-Dália apareceu na copa a chorar, Aquilo é mesmo um bruto, que mal é que
eu lhe fiz e a Tiana disse: Eu vou lá. Ah, agora vens tu? A
conversa já chegou à cozinha? Serve-me o café e o Napoleão e se estás armada em
fada madrinha para cá vens de carrinho». In Rosa Lobato de Faria, Os Pássaros de
Seda, licença editorial por cortesia de Asa Editores, Círculo de Leitores,
2002, ISBN 972-422-650-6.
Cortesia
de ASAE/CLeitores/JDACT