Oriol
Turmeda. Barcelona
«(…) Um ano depois do sucedido, Quimet
e Núria Turmeda casaram-se na mesma igreja branca que dava para um passeio movimentado
e para o mar que servira de fundo aos seus inúmeros retratos. Na altura, Quimet
tinha conseguido viver com um desafogo discreto e declinara, por puro
amor-próprio, qualquer oferta para ocupar um lugar privilegiado na fábrica do sogro.
Porém, Núria aceitou do pai precisamente aquilo que o seu marido acabava de
recusar. Duvidas que possa ser uma boa contabilista? Mas, Núria! Onde é que já se
viu uma mulher desta família a trabalhar? Vês o teu futuro tão negro que tenhas
de te rebaixar a esta humilhação? Um dia vais ser a dona! Deixa-te de histórias,
pai!, ripostou ela. Foste tu a dizê-lo, sou mulher, mas não inútil. Sem esperar
pela aprovação do seu assombrado pai, Núria Turmeda sentou-se diante de uma pesada
máquina de escrever Remington Standard
e dispõe-se a dactilografar como uma dactilógrafa experiente, mas, no ardor do seu
arrebatamento, empurrou o carreto de tal forma que o atirou ao chão com o
estrondo de um cataclismo. Começas bem!, protestou o pai. A tia Núria e o tio Quimet
tinham trazido uma lufada de progresso a uma família demasiado tradicionalista.
Pelo menos era o que Oriol sentia desde que tinha uso da razão e esquadrinhou o
núcleo da linhagem através de melancólicas fotografias. Por essa mesma razão, o
jovem dava-se muito melhor com os tios do que com o próprio pai, Jaume Turmeda,
que herdara visivelmente aquela expressão intransigente do patriarca. Se o avô Francesc
se aventurara a mudanças impensáveis foi mais pela astúcia da tia Núria do que por
pura convicção; a filha exercia sobre ele mais ascendente do que a mulher e, no
fundo, ele adorava-a, como mais tarde Jaume adorou a sua filha Teresa. Estava à
vista que só na noite de núpcias dela é que perdeu o hábito de beijar Núria na
testa antes de ir dormir e também o de lhe ler um conto, que com o tempo se converteu
num ou outro romance dos autores da moda. Apenas alguns anos depois teve de
superar a angústia de a ver com o cabelo cortado à garçon e a mostrar as barrigas das pernas como uma dançarina de cabaré,
sem qualquer pudor.
Mas que é isto, Núria? Trazes o vestido
todo esfiapado, advertiu-a numa censura comedida, esperando em vão que o genro se
juntasse ao seu protesto. São franjas, pai. Pelo menos diz-me que estou bonita,
exigiu ela ao pai, depositando-lhe um beijo terno na face. Francesc Turmeda não
teve outro remédio senão acostumar-se às novas modas; inclusive atreveu-se a dançar
o charleston com a filha, e até com a
mulher, Mariona, mas preveniu-a de que o futuro dos chapéus femininos estaria em
perigo se continuasse a alardear aquela fita com uma pluma, que rodeava a cabeça
à altura da testa e que a ele sempre lhe parecera um atavio de índios fugidos de
uma reserva.
Dentro da lata que outrora preservara
da humidade as especiarias e infusões, surgiram as fotografias da família, misturadas
e sem ordem cronológica. Oriol procurava seis ou sete em concreto: aquelas que
retratavam o estádio olímpico de Montjuic no dia da sua inauguração, há pouco
mais de sete anos. Antes foram aparecendo outras da mesma data, onde se viam as
torres venezianas que deram acesso à Exposição Internacional em 1929 em Barcelona, com a Avenida de Maria
Cristina e o Palácio Nacional ao fundo; ou modestos recantos do Pueblo Español,
que reproduziam a arquitectura popular; ou panorâmicas do porto tiradas do
cemitério da cidade, onde naquele ano já repousavam os restos mortais dos seus
avós. Francesc Turmeda e Mariona Prats tinham morrido com poucos dias de diferença,
em 1927. Primeiro morreu ela, de pneumonia, e a seguir ele, de pura nostalgia.
Isso explicava o facto de nenhum deles aparecer diante do carro do seu pai, ao qual
a família rendeu homenagem como se de um imperador se tratasse, desfilando à
sua frente para serem retratados pela objectiva do tio Quimet. Jaume Turmeda adquirira
o Hispano-Suiza a um fabricante de combinações
que ficara arruinado. Oriol não sabia qual tinha sido a sua cor original porque,
quando entrou nas suas vidas, o pai tinha-o mandado pintar de preto e vermelho.
Só tinha capacidade para quatro ocupantes, de modo que prescindiu de um motorista;
viu-se obrigado a aprender as normas básicas de circulação e lançou-se à aventura
de transitar pelas sinuosas costas de Garraf de cada vez que se metiam a caminho
do seu destino de férias. Oriol Turmeda ainda se lembrava do número exacto de túneis
que havia no percurso até Sitges: nada mais nada menos do que treze. Demoravam mais
de duas horas a chegar a villa Mariona, que desde a morte dos avós corria o
risco de ser devorada pela hera, pelos vendavais de Outono e pelo silêncio. Era
ali que se encontravam aquelas fotografias do lugar que mostravam os tempos do seu
maior esplendor, emoldurando canteiros floridos, fontes e represas ou a avenida
de pedestais com esculturas gregas que dava acesso à entrada principal». In Montserrat
Rico Góngora, A Abadia Profanada, 2007, tradução de Cristina Vaz, Planeta
Manuscrito, Lisboa, 2009-2010, ISBN 978-989-657-084-2.
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