«(…) Jonathan ergueu os olhos para a montanha. Já fora surpreendido
por uma avalanche uma vez. Passara 11 minutos abaixo da superfície, enterrado
na escuridão, incapaz de mover a mão ou sequer o dedo, sentindo frio demais
para perceber que a perna fora deslocada da articulação e estava virada para
trás, deixando o joelho a poucos centímetros da orelha. No final das contas, sobrevivera
porque um amigo tinha visto a cruz do seu casaco de patrulheiro segundos antes
de ele ser soterrado. Dez segundos se passaram. O rugido cessou. O vento
amainou e um silêncio soturno se abateu sobre a encosta. Sem dizer uma palavra,
ele desenrolou a corda que trazia em volta do tronco e amarrou uma das pontas
na cintura de Emma. Recuar não era uma alternativa. Tinham de sair do
caminho da avalanche iminente. Gesticulando com as mãos, Jonathan informou que iriam
pegar uma trilha que subia o paredão, e que ela deveria segui-lo. Tudo bem? Tudo
bem, ela respondeu. Apontando os esquis para cima da encosta, Jonathan
recomeçou a andar. O paredão era muito íngreme e acompanhava a lateral da
montanha. Ele manteve um ritmo puxado. A cada poucos passos, olhava por cima do
ombro e via Emma onde deveria estar, não mais de cinco passos atrás. O vento
aumentou e mudou o curso para o leste. A neve os fustigava em rajadas
horizontais, puxando as dobras de suas roupas. Jonathan perdeu toda a sensação
nos dedos dos pés. Os das mãos ficaram dormentes e rígidos. A visibilidade caiu
de sete para três metros e, depois disso, ele passou a não conseguir ver nada
além da ponta do nariz. Somente o cansaço nas suas coxas lhe informava que
estava subindo e se afastando da greta. Uma hora depois chegou ao cume.
Exausto, escorou os esquis na neve e ajudou Emma nos últimos metros, puxando-a.
Erguendo os esquis pela lateral, ela desabou nos seus braços. Os seus arquejos
vinham em golfadas espasmódicas. Ele segurou-a bem apertado até ela recuperar o
fôlego e conseguir ficar em pé sozinha.
Ali,
entre dois cumes, o vento os castigava com a força de um motor de jacto. O céu,
porém, havia clareado um pouco, e Jonathan pôde ver de relance o vale mais
abaixo que conduzia à cidadezinha de Frauenkirch e, depois, a Davos. Esquiou
até a outra ponta do cume e olhou pela encosta protuberante. Sete metros mais
abaixo, um tobogã de neve descia como um vão de elevador por entre
saliências de rocha. É a pista de Roman. Se a gente conseguir descer por
aqui, vai ficar tudo bem. A pista de Roman fazia parte do folclore da
região e devia seu nome a um guia morto por uma avalanche durante uma descida
de esquis. Emma arregalou os olhos. Encarou Jonathan e sacudiu a cabeça fazendo
que não. É íngreme demais. Já vimos piores. Não, Jonathan..., olhe só para essa
descida. Não tem outro jeito? Hoje não. Mas... Querida, ou nós descemos daqui ou vai morrer congelada. Ela chegou
mais perto da borda, esticando o pescoço para ver melhor o que havia lá em baixo.
Recuou, apoiando o queixo no peito. Quer saber?, disse, meio a contragosto. Nós
já estamos aqui mesmo. Vamos lá. É só uma pequena descida, uma curva rápida, e
pronto. Como eu disse, a gente já viu piores. Emma aquiesceu, agora com mais
certeza. E, durante alguns instantes, deu a impressão de que não havia nada de
errado, de que não estavam lutando contra provável acidente e de que estava
ansiando desde o começo por testar suas habilidades naquele declive quase
suicida. Tudo bem, então. Jonathan tirou os esquis e removeu a película que os cobria.
Empunhando um deles como uma picareta, recortou um bloco de um metro quadrado
de neve e atirou-o pela encosta. O gelo foi rolando montanha abaixo. Trilhas de
neve solta escorreram vagarosamente em alguns pontos da pista, mas a encosta resistiu
bem. Venha atrás de mim, disse ele. Vou abrir a trilha. Emma chegou ao seu
lado, com as pontas dos esquis suspensas acima do vazio. Para trás, falou
Jonathan, apressando-se em calçar os seus esquis. Ela estava com aquela expressão.
Não precisou olhar para saber. Pôde sentir. Deixe que eu vou primeiro. Não
posso deixar todo o trabalho pesado nas suas costas. Nem pense nisso! O último a chegar é mulher do padre,
lembra? Ei..., não! Emma deu impulso, ficou alguns instantes suspensa
no ar, em seguida caiu sobre a pista e seus esquis bateram no gelo, fazendo um
chiado. Aterrissou de mau jeito e atravessou o tobogã a uma velocidade
altíssima, com o esqui levemente torto, pressionado com força na neve. As suas mãos
estavam exageradamente erguidas e o corpo muito curvado para a frente. Toda a
sua silhueta parecia desgovernada, fora de controle. Os olhos de Jonathan
voaram para as pedras que margeavam o tobogã. Vire!, gritou uma voz
dentro dele». In Christopher Reich, A Farsa, tradução de Fernanda
Abreu, Editora Arqueiro, S. Paulo, 2008, ISBN 978-858-041-013-6.
Cortesia
de EArqueiro/JDACT