Rosália
«(…)
Cuido não andar longe da verdade se afirmar que a minha Aventura Poética
começou aí por volta de 1908, tinha
eu os meus oito anos. No dia em que reparei (ou procedi como se reparasse) na
existência das palavras, extraídas da vaza da algaraviada comum por homens
estranhos, incumbidos da missão especial de dizerem o que mais ninguém ousava.
(E o quê, afinal? Sei-o hoje por mal dos meus pecados. Lixo secreto, mutilação
de sombras, punhais de que só resta o frio, galanteios de sonhos parvos, sexos
desenhados na Lua, tentativas vãs de ressuscitar a Criança morta, o ilógico do outro
lado da realidade, sóis ocos, fogueiras a arder por dentro das unhas, gritos
iniciais, pavor da morte nua, paisagens de punhos cerrados contra ídolos de pó,
desejo de embalar o planeta nos braços, regresso às origens, catarse...). No
fim de contas as palavras não serviam apenas para meter na ordem gaiatos
descompostos, insultar as vizinhas linguareiras da cave ou adormecer com canções
o ranho dos miúdos. Dispostas de certa maneira adquiriam outro significado,
exprimiam sentimentos e valores que os homens só daquela forma se atreviam a
desabafar em voz alta com cerimonial de ritmos pautados.
Tratava-se
sem dúvida dum jogo (o que há de mais sério para uma criança), mas dum jogo
que, por manifesta singularidade, também agradava às pessoas crescidas. Pelo
menos os livros escolares não regateavam elogios clamorosos a esses seres mágicos
que acendiam as palavras e as obrigavam, por assim dizer, a buscar-se umas às outras no
papel, carregadas de electricidade de sexos contrários. Não se chamava a
Portugal a Pátria de Camões? E à Itália a Pátria de Dante? Brincar com as
palavras, rimar, eis o princípio da Grande Aventura. Amor com flor. Querida
com vida. Saudade com há-de. Anjinho com caminho e ninho. Frio (pronunciado à
lisboeta) com caiu... Estas últimas, aliás, empregues com calor suave de colóquio
por um tal João de Deus numa poesia, a Enjeitadinha,
a primeira que li e decorei, não sei quando nem onde, e teve o condão (oxalá
não esteja a mentir!) de trazer à tona da minha energia inocente a coragem de
imitar, o acto inaugural mais importante de todos os artistas que se sonham.
Precisarei
de esclarecer que entre este meu jeito de imitar e a famosa teoria do enorme
Aristóteles, Poesia é imitação, não existe qualquer contacto de parentesco? No
meu caso refere-se apenas ao fenómeno comezinho, embora de primacial transcendência
para a propagação da Arte, de repetir, com maior ou menor destreza, a
experiência do versejar alheio, os temas consabidos e os sonetos sobre o amor
eterno que Petrarca e Camões sentiram para sempre por todos nós. Exercício necessário
a que poucos poetas escapam enquanto esperam pela fase do equívoco da imitação,
bem mais misterioso e fundo. Então julga-se que copiamos determinada obra e,
afinal, estamos a reproduzir as linhas diferentes e dissemelhantes de qualquer
coisa de novo e de ignorado dentro de nós. (A esta imitação chama-se, como se
sabe, originalidade, cujo exemplo mais elucidativo é o admirável quarteto que
Ravel imitou confessadamente de Borodine) Vamos porém à Enjeitadinha, que começava assim:
De
que choras tu, anjinho?
Tenho
fome e tenho frio!
E
só, por este caminho
como
a ave que caiu
ainda
implume do ninho.
Não,
não desdenhem desta peçazita que com tanta ingenuidade pífia me insinuou uma
mensagem humana à altura dos meus oito (ou nove, ou dez) anos. Quero-lhe muito
porque nela reside talvez a origem e o embrião da parte mais discutida da minha
Poesia que alguns classificam de social. Mais: a própria Criança-mito-símbolo,
surgida muitos anos depois na insónia gritada de certos poemas de Panfleto
contra a Paisagem de Eléctrico e de Café, vejam lá em que secretas
entranhas o nefando neo-realismo (mesmo impuro como o meu) se engendrou!, não
será também a pobre ave implume de João de Deus, coberta de farrapos de
protesto, pálida de existir?» In José Gomes Ferreira, A Memória das Palavras
(O Gosto de Falar de Mim), 1965, Publicações dom Quixote, Lisboa, 1991, ISBN 972-200-855-2.
Cortesia
de PdQuixote/JDACT